A peça Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, agora no Teatro Nacional Dona Maria, gira à volta de uma família de resistentes antifascistas que tem por tradição matar um fascista por ano. Não vi a peça, mas conheço a tradição – que é tudo menos fictícia.
Os comunistas podem não comer criancinhas ao pequeno-almoço, como nos elucidou, em livre divagação sobre a imbecilidade das direitas, o Conselheiro (não o Acácio, mas o de Estado), mas a verdade é que passaram todo o século XX a matar fascistas.
Mataram muitos em Espanha, em 1936. Fascistas ou os que se lhes afiguraram fascistas. Mataram José António Primo de Rivera, que era falangista, Ramiro Ledesma Ramos, que era mesmo fascista, Ramiro de Maeztu, que era tradicionalista, Calvo Sotelo, que era da direita nacional-conservadora; massacraram presos em Paracuellos del Jarama, fuzilaram mais de sete mil bispos, padres, religiosos e religiosas (desde Diocleciano que não se matavam tantos cristãos em tão pouco tempo, como nesse Verão de 1936); e mataram militares e civis das direitas, que expeditamente transformaram em “fascistas” para os poderem matar em beleza e em boa consciência.
De Lenine a Estaline – a tradição eslavófila
E enquanto os comunistas – e os anarquistas e os socialistas – espanhóis estavam muito bem a matar fascistas em Espanha, o mais importante dos comunistas, o Grande Pai dos Povos, Josef Vissariónovitch, Estaline, atarefava-se na União Soviética a matar comunistas e judeus comunistas – que, para ele, e em sentido lato, também eram “fascistas”. Os bolcheviques já tinham matado os fascistas todos – fascistas avant-la-lettre, já que a Marcha sobre Roma só se efectivaria em Outubro de 1922, no fim da guerra civil russa –, mas, em todo o caso, os “maus”: russos brancos, padres, aristocratas, camponeses e a família do Czar, incluindo crianças, criados e cães. E depois, conservadores, liberais, mencheviques, democratas. O Grande Lenine instituiu os campos de concentração, e Felix Dzerdjinsky, o aristocrata polaco comunista, chefe da Tcheka, tratou de lá internar dezenas de milhares de dissidentes, de “fascistas”, portanto. E assim foram os comunistas, os antifascistas, instituindo a nobre e bela tradição de matar fascistas em nome de um futuro radioso, de um mundo melhor, de um mundo perfeito. Porque para que o mundo possa ser perfeito é preciso matar os “maus” e, como toda a gente sabe, os únicos maus que há no mundo são os fascistas.
Diga-se em abono da verdade que, na peça que está agora no Dona Maria e que se passa no Ano da Graça de 2028, a família que cumpre a tradição de matar o seu fascistazinho anual desde os tempos do salazarismo é subitamente acometida por problemas de consciência. Pelos vistos pela primeira vez em 2028. Será lícita a violência, mesmo que seja para defender a Democracia? Deverão “os bons” matar “os maus” para salvar o mundo e as amplas liberdades democráticas? Isto porque na esquerda doméstica, feita quase só de Catarinas boazinhas, mais cedo ou mais tarde, até os mais tradicionalistas são acometidos por problemas de consciência. Talvez lá para 2028 a nobre dúvida venha também a assaltar o deputado do PS que teve muita pena que o 25 de Abril não tivesse visto “sangue” e “mortos”.
Seja como for, semelhantes dilemas não perturbavam os verdadeiros comunistas, os puros e duros: quando se tratou de fazer a colectivização, Estaline não teve problemas de consciência e matou à fome quatro, cinco, seis, sete milhões de camponeses (o tal Holodomor que, do alto do seu observatório televisivo, o Conselheiro desconsidera com um irónico trejeito de boca).
E, para não quebrar a tradição, quando lhe começaram a faltar fascistas, reaccionários, Kulaks, camponeses, para matar, quando já não tinha sequer mencheviques, o que fez o “Pai dos Povos”, o “Corifeu da Ciência”, o “Arquitecto do Comunismo”, o “Jardineiro da Felicidade Humana”? Voltou-se para os que não eram tão bons comunistas como deviam ser, convertendo-os, mais uma vez, em “fascistas”. Fê-lo com todo o à-vontade, pois no mundo de tábua-rasa que antecede o mundo perfeito, no mundo sem igrejas, sem propriedade privada, sem sociedade civil, só com Partido, os chefes, que têm na mão o Partido, têm também o poder absoluto, que vão usando, mais ou menos criativa e demencialmente, quais Calígulas ou Neros.
A morte é bela
Macbeth, um modelo de tirano violento e assassino, tem remorsos e sonhos terríveis. Os grandes líderes comunistas do século passado, Lenine, Estaline, Mao, Pol Pot, Ceausescu, Mengistu, não eram sequer atormentados pelos espectros das suas vítimas. E como o poderiam ser, se lutavam por um mundo melhor e por uma humanidade perfeita e as suas vítimas eram todas fascistas ou qualquer coisa de equivalente? Para eles, como para a família de Catarinas antifascistas do Dona Maria, matar era uma beleza.
Nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, o festival de “matar fascistas” esteve muito concorrido no Norte de Itália. E aí havia fascistas autênticos para matar. Os resistentes e os comunistas multiplicaram-se à medida que a guerra e as tropas aliadas iam expulsando os alemães, e a guerra civil entre os combatentes da República Social Italiana do Norte e os partigiani escalou em violência.
E mataram o “fascista nº 1”, Benito Mussolini, com a sua companheira, Clara Petacci. Mais uma vez, fizeram-no em beleza, pendurando-os pelos pés em plena cidade de Milão. Depois, mataram mais umas dezenas de milhares, pelo norte de Itália. Em França, onde o número de resistentes se multiplicou depois do Desembarque da Normandia, e sobretudo no pós-guerra, os comunistas aproveitaram a libertação para eliminar, não só colaboracionistas, mas gente da direita católica, monárquica e conservadora. Todos fascistas, claro. E os primeiros resistentes tinham sido de direita, como o general De Gaulle e os militares que o acompanharam em Londres, ainda os comunistas colaboravam com as forças de ocupação alemã (entre Junho de 1940, a entrada da Wehrmacht em Paris, e Junho de 1941, quando Hitler invadiu a Rússia)… Mas isso pouco importa, varrido que foi para debaixo dos sofás da História, em cuja reescrita se especializaram.
O outro notório matador de fascistas, o Grande Timoneiro, Mao Tsé-Tung, também cumpriu generosamente a tradição e a tarefa, matando em quantidades industriais. Começou pelos fascistas do Kuomintang de Chiang Kai-shek, durante a guerra civil, e, depois da vitória de 1949, passou aos agricultores, aos altos e médios funcionários e aos militares. Tal como na Rússia, acabados os “fascistas”, voltou-se para os camponeses, esses claramente fascizantes, e com o Grande Salto em Frente, deixou 40 ou 50 milhões de mortos à fome. Aqui os comunistas de estirpe maoista, no cumprimento do Plano, também não comeram criancinhas, mas os casos de canibalismo nas famílias esfomeadas multiplicaram-se. Mais ainda que na Ucrânia. (Talvez o Conselheiro também reserve uma pérola de ironia para esta outra curiosidade histórica.)
O Grande Salto em Frente: da Revolução Cultural ao Activismo Tofu
Sempre rumo a um mundo melhor – e sempre procedendo ao saneamento de fascistas que os mundos melhores exigem –, Mao lançou em 1966 a grande Revolução Cultural Proletária, soltando por toda a China milhões de Guardas Vermelhos, voluntariosos estudantes que, estimulados pelo Livro Vermelho, se dedicaram a prender, a insultar, a humilhar, os mais velhos – os pais, os professores e todos os inimigos reais ou imaginários do Presidente Mao. E o paranóico frenesim propagou-se. No Camboja, com Pol Pot, cumpriu-se no maior genocídio da História, em proporção: nada mais, nada menos que um terço da população… Mas como resistir à beleza da tradição? E o que fazer quando um um terço da população se afigura claramente “fascista”?
À Europa, a tradição chegou em versão folclórica, com os grupos maoistas, no Maio de 68. E em Itália e na Alemanha, ao folclore seguiu-se a deriva terrorista.
Por cá, foi quase só folclore, com uns julgamentos nas faculdades semi-ocupadas. Passei como réu por um desses tribunais, em 1970. Uma fantochada de meninos do Teatro, um “matar fascistas” em versão portuguesa, mas que representava bem o fanatismo imbecilizante da ideologia assassina que lhe presidia. E com a Revolução, outras Forças Populares viriam. E essas bastante mais letais do que teatrais.
Pois é, comunistas, maoistas, anarquistas, radicais das várias igrejas e seitas utópicas do bloco das esquerdas foram passando com distinção na nobre e bela tradição de matar fascistas e, quando não havia fascistas para matar, passaram a matar-se uns aos outros, chamando-se “fascistas”.
Na peça agora em exibição, há a tal família alentejana que, desde a morte de Catarina Eufémia, mata todos os anos um fascista; e o fascista do ano, como não podia deixar de ser, preenche todos os requisitos – é sexista, racista, agressor, assassino de mulheres, enfim, alguém de intrínseca e de verdadeiramente mau (mas não Tsé-Tung).
Todos sabemos que a grande ameaça à nossa Democracia não é a corrupção, nem o compadrio, nem a estagnação, nem o alastrar da pobreza, real, moral e intelectual, nem o funcionamento enviesado da justiça criminal e social, do ensino, do acesso ao emprego e à informação; nem tão pouco a imposição de uma linguagem e de um pensamento incontestáveis e de leis passadas à socapa como moeda de troca para grupos radicais. Talvez por isso a distopia agora em cena no Dona Maria se centre na grande ameaça que paira sobre nós, na verdadeira ameaça, no Grande Medo: o inexplicável aparecimento do “fascismo”, dos “maus”, que arranjam todos os pretextos para manipular o povo contra a Democracia.
Daí que se imagine o poder em Portugal, em 2028, nas mãos de um partido populista, um partido de extrema-direita que, como seria de esperar, preconiza e aplica vários horrores, numa distopia imaginada à medida local, uma distopia que chega ao poder por eleições. E que vai criar um Estado concentracionário, com reservas para ciganos e imigrantes, controlo de opinião, e todo o rol de horrores que se espera apenas e só de um “Estado fascista”. Mas que, curiosamente, até hoje – além do Holocausto hitleriano, que durou o tempo da guerra –, tem sido o apanágio de Estados antifascistas – na Rússia, na China, no Camboja, na Etiópia, na Coreia do Norte, até em Cuba.
Também curiosamente, e fazendo as contas, se a fictícia família antifascista que está em cena mata um fascista por ano desde 1954, já terá matado, ao tempo da acção, 74 fascistas em território português. Mais do que a Ditadura Militar e o Estado Novo, de 1926 a 1974.
O espectáculo parece fascinante e os problemas de consciência de Catarina excelentes, mas a verdade é que, até hoje, os antifascistas já mataram muito mais do que os fascistas – e fascistas em sentido estrito e em sentido lato.
E isto, Catarina, é capaz de ter alguma importância.
Mas, enfim, que sei eu? Matar fascistas não deixará nunca de ser belo. Ah, e os cenários, e o guarda-roupa, e o Alentejo das ceifeiras, a evocar o cuidado guarda-roupa das ceifeiras e dos ceifeiros do saudoso PREC! E ah, a mestria do inesperado pormenor de uma t-shirt do Black Lives Matter, a dar ao espectáculo um toque de modernidade e de activismo, entre os ecos de Brecht e toda a mística da revolução! E o título em parangonas no coração da cidade? A Beleza de Matar Fascistas, ali, com todas as letras… ainda que não seja para levar à letra, mas tão só para funcionar como denúncia do discurso de ódio (dos outros), como apelo à defesa das vidas (e das mortes) que importam; enfim, como um hino à beleza e à urgência do “activismo”, a nova ficção da revolução!