Como, um dia, desabafou Tony Blair, ao chegar ao carro, saído do Palácio de Buckingham, referindo-se à Rainha Isabel II: “raça da velha”. Como, ainda no balneário, exclamou, certa vez, o treinador do Muhammed Ali: “parte-o todo”. Como confidenciou Virgínia Woolf ao marido e ao restante grupo bloomsbury, depois de ler um trecho de Fernando Pessoa: “Esse português é um atrasado mental!”.
Na verdade, nenhuma destas declarações foi realmente proferida. Pelo menos que se saiba. Mas, mesmo que o tivessem sido, não haveria qualquer mal. Tony Blair não estaria a desrespeitar a Rainha. Virgínia Woolf não estaria a trucidar Pessoa. Nem Muhammed Ali seria conivente com a violência gratuita – muito embora fosse um profissional de boxe. Isto porque todas estas declarações foram ditas num contexto específico. Mas, ao que parece, isso deixou de contar.
Durante as semanas que passaram, foram várias as declarações que fizeram “furor” nas notícias. O presidente do Sporting, num jantar privado, apelou aos atletas de futebol do clube para rebentarem com o F.C.Porto no jogo da final da Taça de Portugal. Algo que, para infelicidade minha, não aconteceu. E o Papa afirmou, numa reunião com Bispos – para todos os efeitos, os seus mais próximos colaboradores – que “coscuvilhar é coisa de mulher” e que “já há demasiada bichice” nos seminários. Afirmações que, a julgar pelo volume noticioso que tiveram, merecem a nossa maior atenção. Algo sobre o qual não poderia estar mais em desacordo.
Isto porque, como ouvi, faz hoje uma semana, João Maria Jonet dizer, o ponto de discernimento está na distinção entre “ser preconceituoso” e “agir em relação a esse preconceito”. Em primeiro lugar, porque todo o conhecimento humano parte de preconceitos e generalizações, sem que isso seja necessariamente errado. Quando alguém diz algo tão simples como “o teorema de Pitágoras funciona” está a generalizar, porque não refere que essa formulação matemática é inválida quando o espaço é descontínuo. Mas não há nada de errado nisso. Em segundo lugar, porque a linguagem tem contextos e figuras de estilo. Não é possível defender seriamente que Frederico Varandas estava a apelar aos jogadores do Sporting para levarem marretas com pregos para o Jamor. Do mesmo modo, não se pode dizer que aquilo que o Papa afirma numa reunião particular é algo que ele diz enquanto representante oficial e institucional da Igreja. E confundir estas dimensões, ainda para mais quando não está em causa uma questão de interesse público, é um caminho perigoso.
Exemplo prático. Foi legítimo o caso do Pentagon Papers onde, através do acesso e divulgação de documentos confidenciais, se revelou o verdadeiro estado da guerra do Vietname, assim como comportamentos, no mínimo, próximos de inconstitucionalidade, por parte de um conjunto de presidentes americanos? Sim. Pelo menos o Supremo Tribunal dos Estados Unidos achou, na altura, que sim. Mas não é decerto a segurança nacional, o estado de direito ou a liberdade de informação, que está em causa em nenhum dos outros casos. É só a coscuvilhice. E essa é diferente do olhar jornalístico.
É certo que em Portugal tem imperado a máxima proclamada por um ex primeiro-ministro, segundo a qual, “nem à mesa de um café um ministro se pode esquecer que é ministro”, mas isso é ceder a uma posição contrária ao espírito democrático. Não é possível pensar um mundo onde tudo é uma enorme conferência de imprensa, onde qualquer frase pode abrir o telejornal do dia seguinte, e onde nem num jantar de amigos ou numa reunião de trabalho podemos ser minimamente espontâneos.
Aliás, há aqui um pormenor acerca da receção mediática destas declarações que não nos pode escapar. Ninguém parece escandalizar-se com a facilidade com que afirmações feitas em contexto privado recebem respaldo na cobertura noticiosa. No entanto, essa atitude não está muito longe daquela tida pelos que partilham fotografias, confissões e conversas de um amigo ou parceiro, na praça pública, após o término de uma relação.
É certo que existe uma diferença entre intimidade e privacidade, mas isso parece que tem significado mais o desaparecimento desta última e o surgimento da ideia de que nada é realmente passível de ser privado, do que, propriamente, a defesa da intimidade. A consequência: tornar o jornalismo uma fotonovela.
De facto, a pergunta não devia ser o que disse Frederico Varandas ou o Papa Francisco, mas, sim, quem é que divulgou estas informações e com que motivo. Isso, sim, seria a notícia. Infelizmente, dá a sensação que andamos sempre à caça do imbecil, onde a verdadeira conquista é obter uma gafe.