Os problemas do Serviço Nacional de Saúde não vêm da falta de médicos, de enfermeiros, ou de farmacêuticos. Por 100 000 habitantes nunca houve tantos profissionais de saúde como há agora. Estão a formar-se mais médicos do que em qualquer altura no passado. Esta constatação não é só verdade para o país como um todo, também é verdade para o próprio SNS.

O problema é que no SNS estes profissionais de saúde têm uma produtividade baixa. A raiz do problema não é apenas a redução do horário de trabalho de alguns profissionais para as 35 horas semanais. As estimativas da produtividade por hora trabalhada indicam que mesmo nesta perspetiva mais específica a situação se deteriorou.

Porque é que a produtividade dos profissionais de saúde baixou? Não é por falta de esforço ou pelas poucas horas de trabalho. Pelo contrário, as preocupações são que muitos profissionais de saúde estão em situação de “burn out”, ou seja, no limiar ou para lá do esgotamento. Como se explica então que haja mais médicos, que estes trabalhem tão intensamente e que tantos problemas de saúde não sejam resolvidos?

Uma explicação plausível, mas menos relevante do que se poderia pensar, é que tenha ocorrido um grande aumento da procura de cuidados de saúde devido ao envelhecimento da população. Não há grandes dúvidas sobre os efeitos qualitativos do envelhecimento da população nas necessidades em saúde: à medida que a população envelhece aumentam os consumos anuais per capita de cuidados de saúde. No entanto, este aumento ocorre à velocidade da demografia, ou seja, de forma lenta. Quantitativamente, o efeito é relativamente reduzido face aos défices de cuidados que têm vindo a ocorrer. Para dar um contraexemplo, com o envelhecimento da população a tendência é para termos cada vez menos nascimentos, mas é precisamente na área das maternidades que temos visto os maiores défices na oferta de cuidados de saúde.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dado que o envelhecimento da população não é uma boa explicação para os problemas do SNS, as duas explicações que sobram são a má gestão e a falta de dinheiro. Não me parece óbvio que as explicações sejam independentes: atirar mais dinheiro para o SNS e manter um sistema com deficiências graves na gestão não eliminará os problemas, só fará o dinheiro desaparecer… Por essa razão, vale a pena concentrarmos a nossa atenção nos problemas de gestão. Estes problemas têm várias origens e são de natureza heterogénea. Convém ir por partes. Um primeiro conjunto de problemas tem a ver com o enquadramento político do sistema de saúde público. As unidades de saúde são dirigidas por gestores com pouca capacidade de mudança, enfraquecidos pela falta de autonomia que lhes é imposta pelos Ministérios da Saúde e das Finanças. Se de um lado temos gestores enfraquecidos, do outro lado temos corporações com algum poder, poder esse que, bastas vezes, é usado de forma contraditória com os interesses dos doentes e da população, como é o caso da gestão dos horários, dos turnos, dos blocos operatórios, etc. Os gestores têm incentivo para contemporizar com situações disfuncionais, já que os custos de mudar e as ameaças à tranquilidade têm muito peso.

Um segundo conjunto de problemas é mais central e foi agravado pela política orçamental seguida desde 2015. O propagandeado “fim da austeridade” foi conseguido, em parte substancial, por uma forte redução no investimento público, quer em termos orçamentais quer por via das cativações. Se a redução do investimento na saúde tivesse sido feita de forma racional, teria ocorrido na forma de um crescimento pequeno em novas capacidades do SNS (hospitais, infraestruturas, equipamentos pesados, etc.). por comparação com épocas anteriores. O problema é que os cortes no investimento foram pouco racionais, cortando-se muito no investimento em manutenção da capacidade, a forma mais rentável de investimento. A falta de dinheiro levou a que em cada momento muitas das ambulâncias e helicópteros já existentes não estejam a funcionar, muitos computadores e componentes dos sistemas de informação dos centros de saúde e dos hospitais estejam avariados ou a funcionar de forma exasperadamente lenta, muitos equipamentos dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica estejam inoperacionais, e muitos consumíveis se esgotem e não sejam reabastecidos atempadamente, tudo problemas que interrompem o funcionamento normal das unidades de saúde.

As ineficiências extravasam o perímetro do SNS. Ao não financiar de forma razoável as unidades de cuidados continuados, na sua grande maioria não estatais, o Estado tem estado a estrangular estas unidades e a reduzir a sua capacidade de oferta de cuidados e logo a forçar o desvio para dentro do SNS de muitos consumos de recursos. Os resultados são cuidados de saúde muito mais caros, ineficientes e pouco humanizados, como é o caso dos internamentos sociais, situações onde doentes com alta clínica se mantêm nos hospitais por não terem para onde ir.

Um terceiro conjunto de problemas foi agravado pelos impulsos ideológicos estatizantes que dominaram nos anos recentes. O SNS consegue ser muito mais eficiente quando também funciona como um bom comprador de serviços a unidades não estatais. O papel social do estado é disponibilizar serviços à população, não implica necessariamente que estes sejam produzidos diretamente em unidades da administração pública. Se o Estado investir em capacidades técnicas e recursos humanos para fazer bom uso da contratualização com entidade terceiras, isso poderá conduzir a ganhos substanciais em eficiência e maior capacidade de satisfazer as necessidades da população.

O quarto conjunto de problemas que afetam a performance do SNS leva-nos à questão da centralização. A emergência recente de tantos problemas com o SNS levou à criação da Direção Executiva do SNS, o que corresponde a uma maior centralização do SNS, com competências que potencialmente se sobrepõem ou entram em conflito com vários dos órgãos de governação do SNS já existentes. Percebe-se o impulso voluntarista para ter pessoas competentes e dinâmicas a resolver os problemas, mas há um risco grande de, apesar das boas intenções, se ter dado um passo na direção errada. A direção certa é descentralizar, dar autonomia de gestão e a correspondente responsabilização às unidades de saúde. Os problemas, os recursos e as soluções podem variar de caso para caso. A Direção Executiva está a ir na direção errada ao aumentar o número de Unidades Locais de Saúde, num processo de centralização da gestão dos cuidados hospitalares e dos cuidados primários para o qual não se encontra evidência favorável…

Não há dúvidas sobre as boas intenções e sobre as capacidades das pessoas na Direção Executiva do SNS. Talvez ainda haja tempo para que elas se convertam à ideia de que ter uma unidade central a controlar tudo nunca irá funcionar bem a longo prazo e que os passos que constituem a verdadeira reforma estrutural que o SNS precisa são mais descentralização, mais autonomia, e mais responsabilização com mais incentivos para as equipas de gestão.