Comecemos pelo princípio. A proposta de revisão constitucional apresentada pelo Observador não foi encomendada pelo Observador ou patrocinada pelo Observador, tal como não conheceu qualquer outro tipo de intervenção do Observador na sua feitura. Foi preparada, aliás, vários anos antes da fundação do Observador. Foi solicitada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos aos autores no ano de 2011 com o propósito de “renovar e desenvolver o debate constitucional”. A Fundação Francisco Manuel dos Santos, por seu turno, tão-pouco apresentou qualquer caderno de encargos aos autores, da mesma forma que não fez, de forma explícita ou implícita, qualquer pressão relativamente ao conteúdo da proposta. Apenas pediu que apresentássemos a “nossa Constituição”.

Os autores eram todos, à altura, doutorandos – em Direito ou Ciências Sociais e Políticas – no estrangeiro e todos tinham nascido depois da entrada em vigor da Constituição de 1976. Em termos ideológicos, abarcam os vários partidos do espectro político-partidário português, da esquerda à direita. Não exerciam então, nem posteriormente a isso, quaisquer funções de assessoria a qualquer órgão de soberania, a qualquer outro órgão constitucional, partido político ou afim. Precisamente por isso, e porque se trata de um trabalho colegial, a elaboração da proposta reflecte a natureza e os métodos de trabalho que um debate constitucional geralmente reveste: carácter deliberativo, democrático, compromissório.

Um bloco central de críticas

A proposta foi imediatamente rejeitada praticamente por todos os que sobre ela se pronunciaram na imprensa ou nas redes sociais. E a unanimidade foi da esquerda à direita, de Vilar de Perdizes a Boliqueime. Dificilmente poderia haver melhor sinal de que o debate público em torno do tema da revisão constitucional estava relançado.

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Na verdade, qualquer ideia que ponha em causa o status quo enfrentará resistências desde a primeira hora, geralmente bem carregadas de adjectivos. E esta proposta – em muitos aspectos iconoclasta, em todos eles desassombrada – tem tudo para pôr em causa o estado actual das coisas, mais que não seja provocando um debate sobre os méritos e deméritos do que existe. Alguns exemplos bastam para confirmar esta afirmação.

Desde logo, propõe-se que se acabe com o monopólio partidário das candidaturas nas eleições legislativas. O que os autores sabiam de antemão que dificilmente mereceria o acolhimento de qualquer actor político relevante, mas a proposta, mais uma vez, não foi elaborada para cair nas graças daqueles, mas sim para lançar um debate alargado. Depois, ao mesmo tempo que se diminui a duração total do mandato presidencial em 3 anos e se reduzem alguns dos seus poderes de bloqueio (como a legitimidade activa para iniciar processos de fiscalização preventiva), aumentam-se as responsabilidades do Presidente da República (pense-se, por exemplo, nas competências para nomear titulares de vários órgãos constitucionais). Se se amputam drasticamente as competências legislativas do Governo e se reduzem as probabilidades de Governos de maioria absoluta, criam-se incentivos para a formação Governos de coligação (que obrigam, por natureza, a compromissos entre as várias forças políticas, mas que também trazem associados os benefícios dos consensos enquanto formas de promover soluções de reforma sustentáveis a longo prazo).

Um dos domínios em que, curiosamente, se verificou um silêncio quase unânime foi o das competências legislativas do Governo. Repare-se que, na Constituição em vigor, o Governo pode legislar sobre praticamente todas as matérias, tendo os respectivos decretos-leis a mesma força jurídica que uma lei parlamentar. Como se não bastasse, pode ainda legislar sobre matérias da competência reservada da Assembleia da República se por esta autorizado. Mas mesmo a utilização que normalmente é feita desta figura é fraudulenta, uma vez que a autorização é pedida já depois de o decreto-lei autorizado estar pronto, sendo depois decalcada deste último.

Ora, a amplitude das competências legislativas do Governo padece de um triplo vício, como refere José de Melo Alexandrino: é “antiliberal, antiparlamentar e antidemocrático”. E a verdade é que em nenhum outro Estado com a mesma matriz civilizacional de Portugal tem o Governo tantas competências legislativas normais. Trata-se de uma herança da ditadura militar (e de outros períodos de interregno constitucional) e da Constituição de 1933, nenhum deles particularmente recomendável como musa inspiradora. A proposta de revisão constitucional apresenta uma alternativa que consiste no reforço das competências legislativas da Assembleia da República e na eliminação da figura das autorizações legislativas. Desprovido de competência legislativa em muitas matérias de relevo, o Governo continuaria a ter iniciativa legislativa perante o Parlamento.

“Quem é que estes cachopos julgam que são?”

O levantamento popular contra a proposta apresentada baseou-se numa série de razões, umas substanciais, outras de forma. Vale a pena referir duas delas.

A primeira, de autoridade, diz mais ou menos o seguinte: trata-se de um grupo de cachopos, para mais desligado da realidade portuguesa e sem qualquer conhecimento prático ou experiência política. O facto de não se tratar de um argumento, mas simplesmente de um pretexto ad hominem para desconversar e enviesar o debate, qual manobra de distracção, é auto-evidente. Não se deixará de notar, contudo, que muitos dos constituintes portugueses de 1976 tinham menos de 35 anos. Para mais, de uma perspectiva republicana, estes cachopos não têm nenhuma qualidade a menos do que aqueles que os criticam: são cidadãos e é precisamente nessa qualidade que intervêm nestas matérias.

Por outro lado, o facto de a iniciativa ter sido publicitada pelo Observador num quadro mais amplo de debate constitucional contaminaria, inevitavelmente, a eventual (ainda que sempre duvidosa, claro) bondade de qualquer das propostas. E isto porquê? Porque o Observador é o ‘bicho papão’ do neoliberalismo e o cavalo de Tróia de toda a ‘maldade direitista’. O Observador seria, no fundo, uma Medusa dos tempos modernos: quem com ele colaborasse seria imediatamente transformado em pedra e proscrito para todo o sempre do debate público.

Ora, esta reductio ad observadorum – uma variante low cost da reductio ad hitlerum, com menos imaginação, menos piada e, definitivamente, muito menos substância – é, a todos os títulos, inaceitável. Para mais, quando foram convidadas personalidades de todos os quadrantes políticos e ideológicos para debaterem estas ideias nas Conferências Constituintes e se lhes endereçaram convites para publicarem textos sobre a matéria, preferencialmente críticos, na página do Observador. Se nenhum outro meio de comunicação social o fez até agora, e se os partidos políticos ainda menos o fazem, ainda bem que o Observador tomou a dianteira. Trata-se de um debate que interessa a todos os cidadãos portugueses e em que todos deviam participar.

Teorias da conspiração

Se até hoje já foram apresentadas várias dezenas de ideias e de propostas para revisões constitucionais, nas mais variadas formas e feitios, e em alguns casos com reincidência (tendo o mesmo autor já apresentado plúrimas propostas), por que motivo é esta proposta tão contestada e não as outras? Apresentada no auge da discussão pública sobre a legitimidade da jurisprudência constitucional sobre a crise económico-financeira, a proposta teria sido preparada como arma de arremesso contra o Tribunal Constitucional e guarda avançada de um Governo neoliberal. “Cai que nem mel!” – foi dito, anunciando uma quase-cabala.

Por muito tentadora que a explicação seja – e é-o –, a verdade é que a data em que esta proposta foi apresentada a quem a encomendou (2011) faria, pelo menos, duvidar da certeza de tal explicação.

Se calhar, apenas se calhar, a razão pela qual se propõem alterações, por exemplo, ao modelo de nomeação dos juízes do Tribunal Constitucional é porque se entende que o regime actual é fonte de alguns problemas e pode causar algumas disfunções. Como se viu, de resto, com a lamentável novela mediática que precedeu a última eleição dos mesmos por parte da Assembleia da República (episódios, de resto, também eles posteriores à apresentação da proposta).

Da mesma forma, talvez o motivo por que se sugere a eliminação da fiscalização preventiva seja porque se acredita que a mesma causa mais prejuízo ao controlo da constitucionalidade e à tutela dos direitos dos cidadãos do que traz benefícios ao Estado de direito. Mas é bem mais fácil negar os problemas do que enfrentá-los e, por isso, são preferíveis teorias da conspiração e processos de intenções a encarar a realidade e discutir as questões.

Não deixa de ser curioso que algumas das vozes que agora se levantam contra esta proposta e/ou contra a metodologia do debate proposto pelo Observador nada tenham dito, e nada dizem, sobre os métodos de revisão constitucional que têm vigorado em Portugal. Apesar de a Constituição reservar a competência de revisão à Assembleia da República, várias revisões constitucionais têm sido negociadas e decididas fora do Parlamento, pelas cúpulas partidárias. Os partidos políticos têm funcionado, assim, como uma espécie de Soviete Supremo que decide as revisões constitucionais, transformando todo o processo numa espécie de vaudeville constitucional que atribui aos deputados à Assembleia da República – os verdadeiros titulares do poder de revisão constitucional – o papel de meros coristas.

Coisas do coração

Entrando na discussão das soluções propostas, uma das críticas que mais tem sido feita é a de que se eliminam institutos e/ou artigos em relação aos quais já havia doutrina e/ou jurisprudência nacionais consolidadas. Por outras palavras: temas sobre os quais já foram escritas milhares de páginas de dissertações de mestrado e de doutoramento ou em relação aos quais há interpretações constantes por parte do Tribunal Constitucional.

Ora, este argumento, levado a sério, é uma defesa incondicional do imobilismo e do status quo. Ou, pelo menos, de uma inércia ancorada na autoridade. Sucede, contudo, que se há característica que bem descreve a tradição jurídica de que Portugal faz parte – e que inclui, diga-se todos os países da Europa continental –, é a de que as normas jurídicas mudam por mera vontade do órgão competente para as aprovar. E com a alteração das normas aplicáveis, ficam inutilizadas teses e tem de haver nova interpretação por parte dos órgãos aplicadores do direito. É assim mesmo.

Uma última variante desta linha de raciocínio é mais emocional e sustenta que não se deve tocar em vários dos institutos constitucionais em que se propõem mudanças por razões de apego, qual consultório sentimental, às soluções que estão em vigor. Crê-se que subjacente a esta visão está uma concepção enviesada do que a Constituição é. A Constituição não é uma espécie de revista Maria dos assuntos do coração, nem um amuleto semiprecioso que se guarda por uma questão de carinho. A Constituição é o acto jurídico que contém as regras fundamentais da organização política do Estado e tem de ser enformada por preocupações fundamentais de justiça, segurança e bem-estar, respeitando, na medida do possível, a identidade constitucional do povo. Nada disto tem a ver com sentimentos.

Um dos domínios em que mais se verificaram reacções sentimentais foi o do Estado social. Não se percebe, contudo, exactamente por que motivo. A proposta mantém a matriz social da Constituição, mas reduz o elenco de direitos sociais e culturais aos seguintes: direito à segurança social e à solidariedade, direito à protecção da saúde, direito à habitação, direito ao ambiente, direito à educação e direito à fruição e criação cultural.

Pegue-se no direito à protecção da saúde. Manteve-se inalterada a previsão da existência de um serviço nacional de saúde. Podia ter-se optado por um sistema privado de seguros ou por um sistema misto, por exemplo, mas entendeu-se que uma revisão constitucional não deveria proceder ao desmantelamento de uma estrutura que provou e que dotou Portugal de excelentes indicadores na área da saúde, a todos os níveis.

De resto, os inquéritos aos cidadãos europeus dão aos sistemas públicos de saúde as melhores avaliações quanto comparados com sistemas mistos ou privados. Trata-se, ademais, de um serviço com o qual a generalidade da população está satisfeita e que os portugueses consideram ser a principal prioridade da intervenção do Estado em termos de políticas sociais, de acordo com estudos de opinião (veja-se, por exemplo, o Inquérito Social Europeu de 2008 para os dados referidos em todo este parágrafo).

Manteve-se também a exigência de que o serviço nacional de saúde seja geral e universal, isto é, que abranja toda a população e todas as patologias. Rejeitou-se, assim, tanto a ideia de um SNS reservado a quem tenha menos rendimentos, quanto uma concepção de SNS reservado às patologias mais complicadas ou que envolvam tratamentos mais caros. No primeiro caso, porque se rejeita a guetização subjacente, que cria uma saúde para ricos e outra para pobres. No segundo, uma vez que não se concebe um SNS que apenas faz intervenções altamente complexas e sofisticadas, sem ter de lidar também com as enfermidades e as técnicas do dia-a-dia.

Apenas se alterou o financiamento do respectivo acesso: deixa de se exigir, como acontece actualmente, que o mesmo seja “tendencialmente gratuito”, e passa a ser o legislador a ter competência para decidir o modelo financiamento em termos estruturais. Em todo o caso, o legislador teria, para mexer nestas matérias, de reunir uma maioria absoluta de votos. Num contexto demográfico como o actual, perante a abertura das fronteiras dos restantes Estados membros da União Europeia ao turismo médico (com um dever de reembolso dos tratamentos, por parte do Estado português, aos pacientes que sejam tratados noutro Estado membro) e a crise económico-financeira que teima em não desaparecer, não discutir o financiamento do SNS é, qual avestruz, enfiar a cabeça na areia. É precisamente para salvar o serviço nacional de saúde, tornando-o sustentável, que se coloca a questão.

E se muitos dos comentadores zurziram contra a mera colocação da questão, poucos são os que, vindos da esquerda ou da direita, a colocam no seu verdadeiro contexto. E este é o de que desde há vários anos que sucessivos governos subfinanciam os hospitais do serviço nacional de saúde, ao mesmo tempo que subsidiam, directa ou indirectamente, mas em regra generosamente, a saúde privada. Isto, seja através da ADSE (e de outros subsistemas públicos como a ADM, a SADPSP e a SADGNR), seja pelos serviços convencionados, seja por meio de parcerias público-privadas. Ao mesmo tempo, não são criadas condições – nuns casos técnicas, noutros financeiras – para que os bons médicos formados no SNS (cuja formação custa ao Estado milhares de euros) fiquem no SNS, potenciando uma debandada geral para os hospitais privados e para as PPPs.

O pé-de-cabra da Constituição

Uma última estratégia da ofensiva contra a proposta apresentada reúne praticamente todas as linhas anteriores numa só: esta iniciativa visa criar uma ‘questão constitucional’ e implodir a Constituição. Seria, assim, uma espécie de pé-de-cabra para assaltar a Constituição. Por este motivo, nem sequer se devia discuti-la: fazê-lo seria o equivalente a ser-se cúmplice do ataque.

Subjacente a esta asserção encontram-se duas ideias. A um tempo, uma concepção de acordo com a qual a Constituição de 1976 é uma vaca sagrada, intocável, uma espécie de fundamentalismo religioso travestido em versão político-constitucional com o qual nem humor se poderia fazer. A outro tempo, que haveria ideias legítimas para serem discutidas e outras que seriam tabu.

Qualquer das duas é inaceitável. Esta versão moderna do centralismo democrático parte do pressuposto de que há uma elite esclarecida que selecciona as ideias que se podem debater no espaço público e, qual newspeak que exclui o thoughtcrime, rejeita a discussão de temas potencialmente perigosos. Essa elite seria, como o partido foi outrora, a vanguarda do proletariado e asseguraria a unidade indispensável para a vitória da revolução. Ou, se preferirem, a União Nacional protectora da família, dos ofícios, da pátria e do império.

Afinal, não foi assim há tanto tempo que um subsecretário de Estado da Cultura, com o apoio do então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva, vetou a candidatura d’O Evangelho Segundo Jesus Cristo a um prémio literário europeu por atentar contra a “moral cristã”, ou que Herman José viu a sua entrevista histórica à rainha Santa Isabel ser cortada e o seu programa cancelado por ir contra “os valores histórico-culturais do país”.

O problema – que é mais do que um pequeno pormenor – é que vivemos hoje numa sociedade democrática e pluralista. E o pressuposto do debate constitucional que se quis começar é precisamente o contrário daquela forma de ver o espaço público: é ser um debate desassombrado, sem tabus, que não quer contribuir para converter a Constituição num mausoléu testamental, mas que faz jus ao seu carácter vivo e intrinsecamente plural.

Como muito bem disse José Carlos Vieira de Andrade na II Conferência Constituinte do Observador, realizada em Coimbra, a Constituição é um assunto demasiado sério para ser deixada aos constitucionalistas. E é tempo de a Constituição sair dos claustros das Faculdades de Direito e das estantes empoeiradas das bibliotecas. Quanto mais assim for, maior legitimidade terá.

“A minha Constituição”

Respondendo ao desafio da Fundação Francisco Manuel dos Santos de há quatro anos, qual é, afinal, a “minha Constituição”? A minha Constituição é a Constituição de 1976. E não há melhor homenagem que se lhe possa fazer do que, a aproximar-se a comemoração dos seus 40 anos, pensá-la, discuti-la livremente e tentar melhorá-la. É isso que faço todos os dias como advogado, como investigador e docente de Direito Constitucional e, sobretudo, como cidadão.

Tiago Fidalgo de Freitas é assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. O título deste texto é emprestado de um artigo da autoria de Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João de Brito Fernandes, publicado na “Revista Jurídica”, n.º 19, 1995, pp. 245-249, precisamente sobre a temática da revisão constitucional.