Nas democracias representativas, os governos minoritários têm tradicionalmente ficado associados a menor eficácia governativa e maior instabilidade política. À excepção dos países escandinavos, com arranjos institucionais singulares, como, por exemplo, a Noruega, onde a Constituição impede a existência de eleições antecipadas e no qual um parlamento muito forte permite à oposição consegue obter benefícios políticos sem ficar associada ao ónus da governação, os governos minoritários ficam associados a custos de transacção muito elevados.

Para além disso, existe na ciência política uma literatura dedicada ao estudo da sobrevivência dos governos que demonstra empiricamente que, para além dos suspeitos habituais — o mau desempenho económico ou a antecipação estratégica das eleições por parte dos governos –, o estatuto minoritário dos governos aumenta a probabilidade da sua queda.

Portugal não é excepção. Desde a consolidação da democracia, em 1982, houve quatro governos minoritários, dos quais apenas um, o primeiro governo de António Guterres, cumpriu a totalidade do mandato. Recorde-se, no entanto, que esse governo minoritário do PS decorreu em condições económicas extremamente favoráveis, ao mesmo tempo que contava com a colaboração sistemática da oposição para garantir a entrada de Portugal na moeda única.

A recente proposta de revisão constitucional, num debate que vem sendo promovido pelo Observador, não só em linha mas também em debates em diversas universidades portuguesas, propõe uma alteração significativa no processo de formação do governo em Portugal, com o objectivo de fomentar as coligações e impedir a criação de governos minoritários. Esta mudança passaria pela necessidade de um voto explícito de mais de 50% de deputados para que o governo entrasse em funções. Vejamos como e porquê esta mudança pode alterar certos atavismos do sistema político-partidário português.

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Tradicionalmente, nas democracias europeias, os parlamentos são câmaras eleitorais, formando governos e apoiando-os ao longo da legislatura. O modo como a relação entre o parlamento e o executivo se estabelece durante o processo de formação de governo é bastante heterogéneo. Em Portugal, por exemplo, é suficiente que o governo não seja rejeitado pelo parlamento para que consiga tomar posse. Basta, pois, que o governo seja tolerado, embora não apoiado, pela maioria dos deputados.

Diferentemente, noutros países europeus — por exemplo, a Alemanha ou a Bélgica — é indispensável para a tomada de posse do governo que este seja apoiado por uma maioria absoluta explícita de deputados. Aparentemente subtil, a diferença institucional entre tolerar e apoiar tem um impacto significativo no tipo de governo formado. A literatura existente demonstra claramente que os países com o chamado “parlamentarismo positivo”, aqueles que exigem apoio, têm menor probabilidade de ter governos minoritários e, consequentemente, menos eleições antecipadas.

Poder-se-á, contudo, afirmar que a exigência de uma maioria absoluta para a formação do governo dificultará a governabilidade do país, impondo negociações mais complexas e prolongadas para a criação de coligações de governo, em caso de ausência de maioria absolutas. Este argumento é, no mínimo, singular, especialmente quando observamos Portugal numa perspectiva comparada.

Em primeiro lugar, nos 28 países da União Europeia, 21 são actualmente governados por coligações, incluindo Portugal. Aliás, até o Reino Unido, arquétipo das democracias maioritárias, foi até há bem pouco tempo governado por uma coligação, depois dos partidos terem percebido que os custos de transacção de exercer uma mandato em minoria no meio de uma gravíssima crise económico-financeira seriam mais elevados do que demorar algumas semanas a negociar um acordo de coligação com cedências mútuas.

Em segundo lugar, Portugal já é um dos países da Europa nos quais a formação de governos é mais prolongada, devido a um processo legislativo anquilosado e arcaico. Dados do European Democracy Data Archive mostram que, em média, em Portugal os governos demoram 39 dias a formar. A média Europeia é de apenas 27 dias. Em países com a necessidade de apoio explícito maioritário do Parlamento, como a Alemanha, os partidos conseguem coligar-se, em média, em 21 dias. Até a Bélgica, tradicionalmente associada a negociações complexas, devido à natureza dual do seu sistema partidário, demora apenas 42 dias a formar governo. Um custo marginal pequeno em relação a Portugal. Estes dois pontos demonstram não só que as coligações são o arranjo institucional normal na Europa mas que os supostos benefícios negociais, em termos de diminuição dos custos de transação na formação dos acordos, não acontecem em Portugal.

A proposta avançada pelos autores da revisão constitucional pretende dar uma resposta institucional a este dilema da vida política portuguesa. Parece haver uma crença generalizada, com apelos constantes e vindos dos vários quadrantes políticos, à necessidade da existência de consensos políticos, e da necessidade de ter governos com a capacidade de implementar o seu programa. Todavia, esta crença parece alicerçar-se na ideia de que os actores políticos são movidos pela boa fé ou por frases gongóricas plenas de retórica.

A alteração das regras do jogo, obrigando a que o governo tenha o apoio explícito da maioria absoluta dos deputados, baseia-se no pressuposto de que o comportamento dos agentes políticos é motivado por constrangimentos e oportunidades ditados pelas instituições nas quais estão inseridos. A comparação com as outras democracias europeias demonstra claramente quais seriam os resultados prováveis da adopção de uma regra desta natureza. A última coisa que podemos esperar é que, mantendo as regras inalteradas, consigamos obter resultados diferentes.