A Constituição portuguesa actual mesmo depois de sete revisões continua a apresentar deficiências que merecem a maior atenção. Claro está que a Constituição tem aspectos altamente positivos e que honram a democracia portuguesa; lá está a devida protecção de (quase) todos os direitos e liberdades fundamentais e sua efectividade, a democracia política, a descentralização, a laicidade do Estado, a fiscalização da validade das normas, a independência dos tribunais, etc… A Constituição é o espelho da transformação radical no bom sentido da sociedade portuguesa, apesar de alguns atrasados mentais continuarem a dizer que as «desigualdades» são maiores do que nunca. Devemos-lhe tudo ou quase tudo.

Os desvarios ideológicos que geraram aberrações constitucionais como a consagração desse órgão político de má nota que foi o «Conselho da Revolução», a abjecta superintendência militar da democracia, a «transição para o socialismo» como modelo socio-económico e objectivo das políticas públicas, a permanência das nacionalizações ditas «conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras» e outros dislates que desfiguravam a democracia portuguesa foram sendo dela retirados na sequência, designadamente, da segunda e da quarta revisões constitucionais.

Tudo ficou bem, portanto? Infelizmente não. Longe disso. Há ainda muito a fazer ou seja, a rever, até fazer da actual constituição portuguesa um texto mais perfeito.

O que há a reter é que a Constituição é ainda demasiado ideológica ou seja, não é neutra no plano das convicções, tomando partido por umas em detrimento de outras, o que afasta muita gente que se não revê em certos propósitos constitucionais. Conviria desideologizar a constituição eliminando compromissos que arredam dela a maior parte dos eleitores. São estes que têm o poder constituinte e este poder é tendencialmente absoluto. A constituição tem de ser mais constituinte do que constituída o que significa que não são admissíveis limites (ou muito poucos são) ao poder de a alterar e de a adaptar à realidade constitucional. Por muito que custe a compreender a alguns, a Constituição é um pacto entre os portugueses imersos em dada circunstância histórica e vivencial e não um texto sagrado indiferente ao evoluir das gerações e às conjunturas. Se assim não fosse, a Constituição seria um entrave ao que é razoável, oportuno e adequado.

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A ver vamos; pelo que toca aos direitos fundamentais, a CRP consagra um vastíssimo programa de realizações económicas, sociais e culturais que, bem intencionadas que são, se revelam, contudo, absolutamente fantasmagóricas. Promete o paraíso na terra o que induz os portugueses em erro tendo em conta as muito escassas possibilidades de o estado o realizar. O que lá está é na sua quase totalidade absolutamente inexequível. Conviria algum realismo nas promessas de felicidade, saúde, habitação de qualidade, instrução, fruição cultural, desporto para todos e até «cultura física».

Continua a Constituição a fazer da propriedade privada e da livre iniciativa económica parentes pobres dos direitos fundamentais, o que leva a que o cidadão português, se quer ver a sua propriedade devidamente protegida, tenha de recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. É uma vergonha.

Pelo que toca ao sistema político propriamente dito, a Constituição continua a permitir que o governo, mormente se existirem maiorias absolutas, se transforme no órgão principal do Estado, desde logo por lhe permitir fazer decretos com força de lei sem ter de pedir autorização ao Parlamento, vício este que foi introduzido no direito português no tempo do Salazar com a revisão constitucional de 1945, e que a actual Constituição obviamente mantém, caso único na Europa e que nos países civilizados é visto como sintoma de ditadura governamental. E que dizer daquela inacreditável norma constitucional que dá ao governo competência exclusiva para a sua própria organização e funcionamento? Já perceberam? O governo pode criar quantos Ministérios, Secretarias de Estado e Direcções-Gerais lhe apetecer. É um fartote. Pois então! Há muita gente a querer comer à mesa do orçamento. Por outro lado, desvaloriza-se até ao limite o referendo como meio de auscultar a opinião pública, insiste-se na excessiva eleição dos juízes do Conselho Superior da Magistratura pelo Parlamento e dos juízes do Tribunal Constitucional, o que politiza em excesso estes órgãos e a respectiva actividade.

Mas o mais grave é a parte económica da Constituição. A tónica é esta: na economia Estado, Estado e mais Estado. Logo o primeiro artigo daquela parte nos diz que a «subordinação do poder económico ao poder político» é o princípio mais importante da ordem económica, ao jeito do mais duro dirigismo estatal da economia. Há um cuidado extraordinário em desvalorizar a propriedade e iniciativa privadas como motores da economia, não há uma única referência ao mercado, e em vez de aceitar que o sistema económico é um sistema de mercado regulado, como em todos os países civilizados, caracteriza-o como uma economia «mista» com larga predominância do sector público, pelo que logo atribui ao «planeamento» da economia uma importância desmesurada na caracterização da ordem económica, planeamento esse que, aliás, não se faz e nunca se fez, e serve apenas propósitos ideológicos. Não define claramente o que o Estado pode ou não fazer em termos económicos, costas viradas para a subsidiariedade do Estado na economia, o que faz do Estado potencialmente o principal agente económico sem que a Constituição a isso se oponha. E continua fiel a comandos que são hoje absolutamente ridículos como a «eliminação dos latifúndios», e isto num país em que o único latifúndio que existe é do Estado. O objectivo é apenas veicular mais uma vez preconceitos ideológicos à custa do realismo e do bom-senso.

Ainda nesta matéria, o que pensam os leitores do artigo constitucional que ainda hoje nos diz que os investimentos estrangeiros ficam subordinados à «independência nacional» e aos «interesses dos trabalhadores»? Não faz a coisa por menos. Esta fórmula faria inveja ao saudoso Lenine, ufano da sua já quase esquecida teoria do imperialismo, mas que a Constituição portuguesa ressuscitou, em total e absoluta contradição com o regime europeu da liberdade de investimentos? É uma enormidade.

Para fechar com chave de ouro, a Constituição põe limites à sua própria revisão, dos quais constam, como não podia deixar de ser, a existência dos «planos» económicos no âmbito da tal famigerada «economia mista». Os portugueses estão obrigados a tolerar um modelo económico cujos defensores não correspondem nem nunca corresponderam à opinião pública maioritária e que só se justifica por cobardia, característica, aliás, muito comum entre os políticos nacionais.

Como lidar com tanta enormidade? Há quem diga e com razão que algumas normas da Constituição estão caducas, e que conviria aperfeiçoar o texto em conformidade. É que, a não ser assim, só nos resta invocar a superioridade do direito europeu – liberal quanto baste, mas também com momentos sociais – para fingirmos que a parte económica da Constituição não existe. Está lá, mas é como se não estivesse. A solução é um tanto esquizoide. Mas é comum no nosso país; fazemos de conta. Fazemos de conta que a parte económica da nossa Constituição não existe, e não se fala disso, a não ser alguns indesejáveis professores universitários que insistem em esclarecer a propósito os alunos.

Enquanto não houver uma revisão a sério da parte económica da Constituição continuaremos a prestar homenagem a ideologias caducas, vítimas de preconceitos que deram mau resultado em toda a parte.

Não contemos com os partidos da maioria para fazer a necessária revisão. A única coisa que lhes importa é continuar a manter o governo como órgão central do poder. Rever a Constituição obrigaria a complicadas negociações e com imprevisíveis resultados. A Constituição como está convém-lhes perfeitamente.