Julgo que terá sido em 2014 que pela primeira vez tentei chamar a atenção dos meus concidadãos para os pedidos de indemnizações que iriam cair sobre o país por ter estado envolvido na escravatura transatlântica. Fi-lo em “Os cobradores da História”, um artigo publicado no jornal i que não está online, mas que pode ser lido no meu livro Combates pela Verdade. Portugal e os Escravos. Afirmei nesse texto que a iniciativa desses pedidos de indemnização viria de activistas políticos das Caraíbas, onde está muito disseminada a crença de que a escravatura colonial foi um crime sem qualquer paralelo na história humana. Na altura em que escrevi esse artigo já existia a Comissão para as Indemnizações das Caraíbas, uma organização que prometia vir a exigir aos povos ocidentais a paga pelo que terão feito alguns dos nossos remotos antepassados.
Depois dessa data voltei por diversas vezes ao assunto, no Público, no Observador e noutros órgãos de comunicação social, insistindo na ideia de que por trás da exigência aparentemente inocente de um pedido de desculpas pelo tráfico transatlântico de escravos estava a questão das reparações — questão que, no Ocidente, se tornou uma verdadeira ideia fixa, ou talvez seja melhor dizer uma neurótica penitência —, e avisando que lá longe se ia preparando uma tempestade que iria atingir-nos. Mas reconheço que é difícil ver estas coisas quando elas ainda estão a grande distância no tempo e no espaço e aqui em Portugal tudo isso pareceu tão inacreditavelmente absurdo que as pessoas, por norma, continuaram alheadas e despreocupadas a dormir à sombra do vulcão.
Agora esse vulcão faz-se ouvir, as nuvens negras estão já bem formadas no céu e a conta ganha expressão numérica e está prestes a chegar. Em números redondos seriam mais de 20 biliões de dólares que supostamente deveríamos ao Brasil. Para os que, como eu, se perdem na dimensão dos grandes números, relembro que um bilião equivale a um milhão de milhões, isto é, a 1.000.000.000.000 ou 10 elevado à 12ª potência. Lembram-se como, aquando da visita de Lula da Silva, o nosso Presidente da República decidiu pedir desculpa ao Brasil pela escravatura e se prontificou, de forma voluntarista e simpática, a assumir “responsabilidades para o futuro” pela existência da referida escravatura naquele território? Que dirá Marcelo Rebelo de Sousa se, em breve, o cobrador do fraque for bater à porta do Ministério das Finanças com uma conta com tantos zeros para pagar? É verdade que os potenciais reclamantes poderão generosamente aceitar que paguemos os 20 biliões de dólares em 10, 15, 20 ou 25 anos, em prestações mais duras ou mais suaves, por menos ou mais tempo, o que ainda assim, e no caso mais alongado no tempo, implicaria a simpática quantia de 823 mil milhões de dólares por ano.
Essa ameaça não paira apenas sobre nós, claro. Neste momento está a ser exercida sobre o Reino Unido uma grande pressão de natureza política e jurídica para que peça desculpas pela escravatura e indemnize, por esse motivo, dezenas de países nas Américas. Mas a pressão irá incidir sobre todos os países ocidentais envolvidos na escravatura transatlântica, Portugal incluído, e as contas estão feitas. Assim considera-se que os Estados Unidos — que, ao contrário do que diz a nossa extrema-esquerda, foram, sim, a maior potência esclavagista ocidental — teriam de pagar, contas em dólares, 26,8 biliões, o Reino Unido 24 biliões, Portugal 20,6 biliões, a Espanha 17,1 biliões, a França 9,3 biliões, os Países Baixos 4,9 biliões, o Brasil — que, de 1822 em diante, ao contrário do que pretende a ladaínha woke, é para todos os efeitos, incluindo a contabilização do tráfico de escravos, um país separado de Portugal —, teria de desembolsar 4,4 biliões, a Dinamarca 0,7 biliões, etc. Estas importâncias seriam todas devidas a países das Américas que decidam vir a requerê-las de forma amistosa ou litigiosa. Quem tiver interesse em ler as mais de 100 páginas de um bem elaborado relatório que veio a público no passado mês de Junho, encontra-o neste link. O relatório procura fornecer aos potenciais requerentes a fundamentação jurídica, económica e histórica para avançar por via diplomática ou contenciosa no sentido de pedir reparações, e conta com o apadrinhamento e aval de um prestigiado juiz do Tribunal Internacional de Justiça, o jamaicano Patrick Robinson, e com o apoio ou orientação historiográfica e técnica — não sei ao certo —, de David Eltis, um dos mais reputados historiadores nesta área de estudos.
A nossa extrema-esquerda festiva deve dar pulos de alegria masoquista com esta notícia enquanto se flagela mais um pouco. E falo em pulos de alegria porque esta é apenas a conta que os activistas poderão vir a apresentar-nos relativamente ao Brasil. Num segundo momento de cegueira, fanatismo, absurdo e desfaçatez histórica haverá provavelmente uma outra conta relativamente a África. Note-se, a propósito de África, que os vários países africanos que foram, a par dos países ocidentais, co-autores do sistema escravista transatlântico não foram chamados, no relatório que referi acima, a serem também co-responsáveis pelas reparações, o que diz tudo sobre a óptica e o viés que guia este tipo de movimento ideológico e de acção política.
Diz tudo acerca desse viés e subentende um ardil, um truque de ilusionismo, no qual se sustenta o relatório e a exigência das astronómicas indemnizações. De facto, sabendo-se que nos termos de um direito penal justo, ninguém pode ser punido por condutas que não estivessem legalmente previstas e tipificadas como crime no momento em que ocorreram, e sabendo-se que o tráfico transatlântico de escravos e a escravidão colonial foram legais até ao século XIX — ou finais do século XVIII, se considerarmos o caso excepcional e intermitente da França republicana — em todos os países europeus e americanos não haveria qualquer base jurídica para exigir reparações por factos ocorridos antes dessas datas, isto é, antes das ilegalizações da escravatura. Para contornarem esse obstáculo lógico e jurídico, os autores do relatório criaram uma ficção ou falsidade histórica: a de que a escravatura seria ilegal em África, o que é obviamente indocumentável, contestável em tribunal e constitui o calcanhar de Aquiles do relatório e da pretensão de indemnizações.
Seja como for, os dados estão lançado e este jogo pura e simplesmente não irá parar. Por isso eu deixo aqui uma pergunta que é, simultaneamente, um alerta: não será altura de sairmos do nosso torpor ou indiferença e de nos irmos preparando, atempadamente, para o embate? É que é possível contestar o relatório e o eventual pedido de indemnização do ponto de vista histórico e, suponho eu, também do ponto de vista económico e jurídico. Mas para isso é preciso estudá-lo e ir construindo linhas de defesa. Quem vai ao mar avia-se em terra e é absolutamente garantido que nós iremos ao mar.