Em Oeiras, no ano de 2004, no fim de uma longa reunião pública de câmara em que se distribuiu habitação social, um oeirense veio ter comigo e disse-me: “Doutor, isto é uma vergonha. As casas vão todas para ciganos e indianos! E nós, portugueses, ficamos com uma mão à frente e outra atrás!”. À altura, eu era vereador da Câmara Municipal de Oeiras, eleito pelo PSD. E como é comum, no poder local, os cidadãos falam com os políticos. O que oferece matéria para reflexão é o comentário feito por este oeirense e o facto de o fazer comigo. É que eu sou de origem indiana e vê-se bem, na cor da pele. Mas o queixoso não conseguia ver, no rosto do Poder, o “indiano”. Via “o vereador”.

Causava-lhe – e com razão – confusão que ele, com salário baixo e muitas dificuldades para ter uma vida digna e cuidar da família, não tivesse acesso a certo tipo de apoios públicos. E que pessoas com um nível de rendimento só um pouco abaixo (e, eventualmente, com rendimentos não declarados) pudessem obter uma casa com uma renda simbólica, passando-lhe à frente – em relação à qualidade de vida. Em termos comparativos, uma situação desequilibrada, entre rendimentos e benefícios.

Se a generalização racista que tinha sido feita – “ciganos e indianos” – é de lamentar, a razão da crítica é razoável – quem usufrui do RSI sem trabalhar e com acesso a benefícios sociais, tem uma situação económica, antes da atribuição de uma habitação, muito similar a quem, trabalhando, aufere salários baixos e não usufrui dos mesmos benefícios.

Portugueses “brancos”, a trabalhar, com baixos rendimentos, e imigrantes legalizados ou portugueses de etnia cigana desempregados, podem estar em situação de necessidade muito próxima e a atribuição de benefícios sociais a uns e não a outros pode contribuir para sentimentos de racismo.

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Atualmente, quando conferimos os graus de satisfação dos Portugueses com o regime político e os serviços públicos, será importante não afastar a correlação entre preconceito e situação vivida. Preconceito, que não se refere, exclusivamente, a questões de discriminação racial, mas também a outras, como, por exemplo, a promoção de campanhas nas escolas que criam dificuldade de afirmação, junto da maioria das famílias, da identidade de género. Ao preconceito, associa-se uma aceleração dos custos de vida em todo o país, com a pressão maior nos custos da habitação. Os salários baixos, generalizados, aumentam o descontentamento de muitas corporações. Os casos de corrupção, favorecimento e comportamento de vários políticos, degradam o respeito pelas instituições.

António Guerreiro, colunista do Público, no passado sábado, e alimentado pelo que parece um sentimento de superioridade intelectual de Esquerda, acusa os votantes no Chega de “pobreza cultural”. Será esta que provoca o referido voto. Diz que os portugueses votantes no Chega “são a realização concreta e definitiva da mediocridade, do estilo de vida mais contagioso e exportável.” Pois. É esta arrogância de Esquerda, de António Guerreiro e de muita gente no PS e no BE, nomeadamente, que contribuiu – e muito – para criar fossos entre os que se acham magníficos e aqueles que os “magníficos” acham “medíocres”.

Basta olhar para o mapa eleitoral para perceber que os “medíocres” estão espalhados por todo o país e que, desiludidos com os partidos tradicionais, que propõem modelos de desenvolvimento, preferiram votar num partido que propõe “limpar Portugal”. Não. Estes Portugueses não são medíocres. Sentem-se abandonados, insatisfeitos, agredidos nos seus modos de pensar, nos valores que defendem. Sim, muitos deles, à conta do abandono e do desprezo, polarizaram-se, deixaram-se predar por movimentos xenófobos e populistas. Como aconteceu um pouco por todo o mundo ocidental. O que é que ainda falta explicar às Esquerdas?

Agora, não vale a pena continuar a alargar o fosso, com atitudes lamentáveis como a de António Guerreiro e outras similares. Agora, é momento de refletir para saber como gerar confiança e cimentar a coesão na comunidade nacional.

Portugal não é caso separado, numa Europa que perdeu valores próprios – valores culturais, religiosos, morais – e que sem mão de obra migrante, não consegue prover parte das suas necessidades, num cenário de ocaso demográfico das populações autóctones.

Vivemos um continente comprimido entre Esquerdas minoritárias que ditam o “politicamente correto” e o crescimento de direitas extremistas que querem “pôr isto na ordem”.

Que no balanço de 50 anos de democracia uma parte significativa da comunidade nacional esteja descontente e tenda para o populismo, exige humildade e determinação.

Humildade, para perceber que desigualdades gritantes persistem, a pobreza ameaça uma percentagem significativa da população, valores que importam a parte maioritária da população são desprezados ou ridicularizados, a corrupção corrói e a perceção de que o PSD e o PS não são capazes de levar o país para a frente, aumenta.

Determinação, para defender e promover a pluralidade de valores que constitui a comunidade nacional e não aceitar chantagens dos que querem o Poder com base na capitalização demagógica das insatisfações e sem nenhuma resposta séria para cuidar da coesão e desenvolver o país.

Esperemos que o que dita o nosso futuro não seja o modo como se olha para a cor da pele – situação, atualmente, aumentada – mas as nossas capacidades e sentido de solidariedade. A diversidade cultural não pode ser só a reivindicação da imposição dos valores das minorias. Deve, obviamente, respeitar e defender os valores das maiorias – e encontrar o equilíbrio no respeito mútuo é uma tarefa essencial.

Precisamos de nos reunir em torno do objetivo maior de criar riqueza e ter mecanismos de redistribuição equitativos. Mas se estivermos entretidos a criar divisões na comunidade nacional, não chegamos lá.