Quando os governos se começam a fragilizar, é vulgar assistirmos a batalhas na praça pública na altura em que se está a elaborar o Orçamento. No início dos mandatos estão todos os ministros unidos, ninguém fala, ninguém critica. À medida que vão passando os anos no poder, o cansaço da disciplina orçamental começa a notar-se e alguns ministros, nomeadamente os que têm mais poder – venha ele de onde vier – perdem a paciência com o ministro das Finanças. E começa a caça ao ministro da Praça do Comércio. Com António Costa já aconteceu com Mário Centeno e agora, de forma ainda mais explícita assistimos ao ataque, sem qualquer disfarce, do ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos a João Leão, por causa da CP. No caso do Governo de António Costa parece é ter-se esquecido que há um preço a pagar pelo “virar a página da austeridade”. O milagre da disciplina financeira com um Estado generoso está a mostrar que não há milagres.

O que agora ficámos a saber pela voz do ministro Pedro Nuno Santos só é novo porque finalmente alguém resolveu dizê-lo. Noutros tempos, antes da Geringonça, formal como no passado ou informal como no presente, a realidade das empresas do Estado já teria sido, há muito, denunciada. E assim tinha igualmente sido inviabilizada uma das ferramentas usadas para controlar as contas públicas, a par das cativações. Claro que os partidos à direita também conseguiriam criticar esta táctica, se mantivessem o discurso da responsabilidade financeira, mas com responsabilização de quem gasta. Mas preferem nada dizer e andarem em guerras internas. Convenhamos que o mesmo parece estar a acontecer com o Governo, com ministros como Pedro Nuno Santos que parece ser melhor que a oposição a denunciar a forma como se controla o défice.

Mário Centeno, e agora João Leão, além das famosas cativações transformaram as empresas detidas pelo Estado em direcções-gerais. A disciplina a que estão sujeitas é, nos governos de António Costa, muito mais apertada do que acontecia no tempo da troika. Dependentes das Finanças para aprovarem os seus planos de actividade, que lhes permitem contratar pessoas e investir, os gestores das empresas detidas pelo Estado sabem que basta ao gabinete virado para o rio, na Av. Infante D. Henrique em Lisboa, manter os papéis na gaveta para ficarem atados de mãos e pés. Com este bloqueio de secretaria ficam obrigadas a seguir um decreto de execução orçamental que o ministro até se dá ao luxo de não fazer todos anos – está em vigor o de 2019 –, evitando assim alterar as regras, em confronto com os seus colegas de Governo. João Leão desmente esta tese, justificando a ausência do decreto com a pandemia. A realidade é que qualquer gasto adicional, da simples compra de um carro à substituição de funcionários, tudo tem de ir às Finanças que nada aprovam nem deixam de aprovar. Vai ficando por lá, na gaveta. (Basta fazer uma busca por empresa pública no decreto de execução orçamental para se perceber como a mão das Finanças está em tudo).

Pedro Nuno Santos, o ministro que se irrita facilmente e tem poder próprio, irritou-se de novo e denunciou esta prática de veto das Finanças porque, aparentemente, o está a sentir na pele nos projectos que tutela, designadamente na CP. E também porque cometeu o erro de fundir a CP com a EMEF, prometendo poupanças de milhões, mas desvalorizando os efeitos na gestão da própria CP, que agora a impede de ter as rodas que antes podiam ser compradas pela empresa de manutenção – ou Pedro Nuno Santos e o presidente da CP que se demitiu não conheciam os labirintos das regras orçamentais. Como se esqueceram que há facturas que aparecem a prazo.

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Usando um ditado popular muito apreciado por António Guterres, o que Pedro Nuno Santos e outros ministros irritados com João Leão se esqueceram é que não podemos “ter sol na eira e chuva no nabal”. Tem sido politicamente muito útil no combate contra o PSD apresentar o primeiro excedente orçamental da democracia portuguesa (em 2019) e afirmar que foi graças a uma gestão orçamental sem austeridade que se conseguiu enfrentar a pandemia. Desde 2016 que alertamos nestes artigos que a história está mal contada, que aquilo a que assistimos é a uma “austeridade” gerida de acordo com princípios de gestão política e não com princípios de racionalidade económica.

A disciplina orçamental foi conseguida apertando os orçamentos de tudo aquilo que não se via, como aliás várias vezes se disse nestes artigos. Contrariamente ao que se pretende fazer crer, a pandemia apanhou o Serviço Nacional de Saúde degradado como se começa agora a ver quando o sistema tem de voltar à sua vida normal. Veja-se, por exemplo, o que diz o director clínico do Hospital de Setúbal, Nuno Fachada, na sua corajosa demissão, identificando problemas que quem usa os hospitais sabe que existem noutros sítios, como no Barreiro.

Os serviços públicos em geral estavam a degradar-se antes da pandemia e exemplo disso é a incapacidade que se está a ter de, depois dos confinamentos, repor o funcionamento do Estado. E as empresas públicas ficaram a ser geridas com mão de ferro das Finanças. Além de, em muitas delas, os gestores não terem recuperado os seus salários, não conseguiram gerir nada, no sentido de investir e desenhar estratégias. Claro que na perspectiva das Finanças algumas dessas empresas são é centros de custos e, como algumas contam para o défice, têm de ser controladas.

Vamos a caminho do sétimo Orçamento feito pelo Governo de António Costa e nada se fez para corrigir estruturalmente as contas públicas. O que aliás explica o facto de não se ter reposto, por exemplo, as taxas de IRS que vigoravam antes do enorme aumento de impostos de Vítor Gaspar e continuarmos com uma enorme dificuldade em reduzir impostos.

Veja-se a prudência com que está a ser gerido o aumento do número de escalões de IRS, anunciado pelo primeiro-ministro, com tentações de ir buscar ao englobamento pelo menos parte do que se alivia no imposto.

Também nada de estrutural se fez nas empresas que pertencem ao Estado, como se vê aliás na CP. Pedro Nuno Santos pensou que ia poupar milhões e atou ainda mais as mãos e os pés da empresa, quando escolheu a fusão com a EMEF. A fusão até pode ter toda a racionalidade, mas enquanto a gestão das contas públicas for feita sem coragem política – ou sem que o Governo do PS tenha margem política para o fazer – aquilo a que vamos assistir é a estas tácticas de rigor financeiro, por via das cativações e vetos de gaveta.

O que os ministros deste Governo não podem querer é vangloriarem-se do excedente orçamental e depois gritarem com o ministro das Finanças. Mário Centeno primeiro e agora João Leão estão a disciplinar as contas públicas com a margem política que o primeiro-ministro lhes dá, condicionada pela necessidade de consensos à esquerda e por manter a administração pública e os pensionistas satisfeitos. Uma efectiva e economicamente racional correcção do défice orçamental, que permitisse, por exemplo, a Pedro Nuno Santos recuperar a CP, exigiria reduzir o número de funcionários públicos e racionalizar os seus salários, nomeadamente os mais baixos, reestruturar os apoios sociais, racionalizar o SNS e avançar com a reforma das pensões.

Enquanto não houver coragem ou ambiente político, para reestruturar o Estado e torná-lo mais eficiente, a única via para conseguir o tal “excedente orçamental” é aquela que foi encontrada por Centeno e Leão: a austeridade escondida debaixo do tapete. A mudança de ministro das Finanças em nada altera as condições políticas que este Governo tem para reduzir o défice público, tão necessário por causa da dimensão da nossa dívida. Vamos continuar a assistir à tática da austeridade escondida, a única que um governo minoritário, como o de António Costa, tem condições políticas para aplicar.

Ninguém no PS ou no Governo tem, por isso, o direito de se queixar de ter agora a factura de uma tática que permitiu aos socialistas aparecerem como os novos campeões da disciplina financeira. Os cidadãos em geral é que se podem queixar e vão pagar a factura do adiamento das reformas que é preciso fazer. Como se começa a ver com as queixas de Pedro Nuno Santos que só se pode queixar de si próprio. Porque todos são e foram cúmplices desta estratégia.