Será que tem de haver lealdade política para escolher o Diretor da Biblioteca Nacional? Ou do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA)? Ou um regulador? Parece-me que não. Em ambos os casos a competência técnica e a capacidade de liderança devem ser essenciais e a autonomia de gestão e decisão e o afastamento do poder político é uma mais-valia. Será que deve haver alinhamento político entre o Ministro e o Diretor Geral de Política de Justiça ou o(a) Diretor(a) Geral de Saúde? Julgo que sim. Sendo Diretores-Gerais que têm de implementar orientações de políticas setoriais é bom que haja lealdade e alinhamento político com a Ministra da tutela. Há claramente dois tipos de organismos e de dirigentes que deveriam ter processos de seleção, e de permanência nos cargos, diferentes. Porém, o nosso modelo CRESAP é o one size fits all, o mesmo para cargos predominantemente técnicos e políticos.

Júlia Ladeiras, a Presidente  da CRESAP, esteve recentemente na Assembleia da República a identificar, mais uma vez, os benefícios e as limitações desta instituição que faz uma short lists de três candidatos a cada lugar de cargo dirigente da administração pública, em que um é posteriormente selecionado pelo membro do governo. Sucederam-se alguns anúncios da ministra Alexandra Leitão sobre alterações aos processos de seleção dos dirigentes. Será que vai haver alguma reforma e será significativa? Qualquer reforma que se queira minimamente duradoura deverá envolver pelo menos os dois maiores partidos (PS e PSD) e desejavelmente um debate público com a sociedade civil. Digamos que é condição necessária, mas não suficiente para uma boa e duradoura reforma. Na origem da CRESAP, convém recordar, esteve um acordo de Passos Coelho (PSD), com António José Seguro (PS). Esse acordo em 2011 que se traduziu apenas numa abstenção do PS na votação inicial na generalidade da Proposta de Lei PSD/CDS (o PS votaria contra na votação final) permitiu ao PS indicar o seu Presidente. Foi o próprio João Bilhim, militante socialista, que liderou inicialmente a CRESAP, que o afirmou na Assembleia da República. Desde a legislação inicial passaram-se dez anos, houve trabalhos académicos sobre o assunto, debate público e político e projetos lei apresentados na Assembleia da República, mas até  agora nada de essencial mudou. É tempo de fazer um balanço e de mudar.

Sou dos que desde antes da primeira hora, defenderam a criação de uma instituição do tipo da CRESAP, que introduzisse maior transparência e desse maior relevo à componente de mérito na seleção dos cargos dirigentes. Alguma evidência empírica sugere que esse objetivo terá sido alcançado. Porém, considero há vários anos que é necessário melhorar o modelo (ver artigo aqui no Observador).

Os problemas do atual modelo são vários. Um deles – o das nomeações em regime de substituição – foi recentemente abordado pela comunicação social (Expresso e  negócios) e já anteriormente tinha sido identificado por trabalhos académicos. Após vacatura do cargo de dirigente o governo nomeia alguém em regime de substituição, que supostamente deveria ocupar transitoriamente o cargo, mas perdura nele por vários anos (2, 3, 4 anos), ganhando deste modo vantagem competitiva em relação a outros candidatos. Tem o “benefício” adicional desse tempo não contar para o tempo máximo de comissão de serviço (duas comissões de cinco anos cada). Não é de estranhar que entre 70% e 75% dos dirigentes nomeados pelo governo, após concurso CRESAP, já fossem dirigentes do organismo (em regime de substituição)… há vários anos. Isto explicará, decerto, que o número de candidatos a dirigentes tenha vindo a diminuir de ano para ano. Na prática, porque um bom candidato, que não seja dirigente (em substituição), sabe que a probabilidade de ser escolhido é muito inferior a um quarto. Outro problema é a falta de recursos próprios  e a pouca independência quer do Presidente quer da instituição CRESAP. Um problema adicional é a possibilidade (já concretizada) do membro do governo recusar os nomes da short list, indicando um novo concurso com um novo perfil de candidato a selecionar para o mesmo lugar (problema esse que não existiria se houvesse cargos claramente de nomeação política).  Finalmente, existe o problema dos dirigentes intermédios onde não há limites para a renovação das comissões de serviço podendo eternizar-se em funções e bloqueando a mobilidade e o acesso dos mais jovens a lugares de topo na administração.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Face a estes reconhecidos problemas o PS, durante toda a passada legislatura, recusou-se a reformar o modelo de seleção quer do pessoal dirigente, quer dos dirigentes intermédios e também não contribuiu para melhorar a seleção e formação dos trabalhadores em funções públicas. Só a qualidade de deputado não inscrito me permitiu apresentar em 2019, três projetos de lei (ver postscript) sobre a temática dos cargos dirigentes propondo uma separação entre os procedimentos a adoptar na presença de cargos de natureza eminentemente política e cargos essencialmente técnicos. Sim, não é a mesma coisa ser dirigente do MNAA ou ser Diretor Geral de Política de Justiça e por isso os métodos de seleção devem ser diferentes. No primeiro caso advogo que se restrinja a dois nomes a short list, preferencialmente de género diferentes, e haja mais informação sobre os candidatos. Limitavam-se as nomeações políticas travestidas de critérios de competência técnica. Acabava-se com a necessidade de, se o nome não agrada, refazer o concurso com outro perfil. Tinha-se a coragem de assumir que certos cargos são, e devem mesmo ser, de confiança e lealdade política. Neste caso a nomeação não necessitaria ser precedida de concurso e bastaria haver um parecer sobre o CV do candidato. As propostas que apresentei incluíam ainda limitação dos mandatos de dirigentes intermédios e medidas para reduzir o tempo em que um dirigente, nomeado em regime de substituição, pode manter-se em funções após o júri da CRESAP ter indicado a sua shorlist.

Esses projetos que apresentei basearam-se em estudos académicos, públicos, e em debate público. Certamente que haverá outras propostas válidas para resolver os problemas identificados acima que deverão ser discutidas e analisadas. Poder-se-ia considerar que no caso dos cargos eminentemente técnicos ou de reguladores, o concurso deveria ir até ao fim. Porém, aquilo que se conhece é apenas a intenção do governo de acelerar a abertura de concursos após nomeação por substituição, e limitar as renovações de serviço dos dirigentes intermédios. Indo no sentido certo, são alterações muito insuficientes face à relevância dos problemas identificados.

A área da Modernização do Estado  e da administração pública ganhou relevo neste, demasiadamente grande, XXII governo Constitucional. Espera-se inovação e ambição, mas teme-se que a alteração ao modelo dos cargos dirigentes saiba a muito poucochinho.

PS: Algumas referências de trabalhos que incidem sobre a CRESAP: Sílvia Santos (2019): O impacto da CRESAP na seleção de cargos dirigentes da administração pública; Pereira P.T. e Almeida, L. (2019) Melhorar o Modelo de Recrutamento e seleção de Dirigentes na Administração Pública

Em termos legislativos, apresentei três projetos de lei do qual ressalvo dois: o PJL1198/XIII/4ª  propõe-se separar os métodos de  seleção de cargos dirigentes de confiança política e cargos de natureza predominantemente técnica com uma listagem dos organismos com cargos dirigentes de natureza política (ver Anexo do PJL). Por seu lado o PJL1201/XIII/4ª  propõe a necessidade de um parecer aprovado por maioria qualificada na Assembleia da República, sobre o nome indigitado para Presidente da CRESAP.