Recentemente, a vocalista da banda “The Gift” veio estupefacta para a imprensa queixar-se da forma como foi tratada pelo pessoal operacional do Rock in Rio. Segundo ela, expulsaram-na do festival em que estava a trabalhar como comentadora, por causa do consumo indevido de um “croquete” na zona VIP.
Lembro-me também de há uns anos a então Ministra da Administração Pública Alexandra Leitão ter, segundo o sindicato dos trabalhadores dos registos e notariado, destratado pessoalmente os funcionários da loja do cidadão das Laranjeiras, em Lisboa. Segundo a versão da própria, a qual se deslocou pessoalmente a este estabelecimento, estava um utente à espera para ser atendido há 11 horas e a mesma instou os funcionários para que o atendessem.
O que têm a ver estes dois episódios? A conduta contestada de funcionários de suporte a uma atividade. Quem é este tipo de trabalhador?
Em gestão, as atividades primárias e de suporte são essenciais no conceito de “cadeia de valor” de Michael Porter, um autor que influencia a gestão de empresas até aos nossos dias. As atividades primárias são as relacionadas com a criação física do produto/serviço e fulcrais para a criação de valor. As de suporte são as atividades que criam valor, mas não são tão decisivas. Por exemplo, numa atividade de fabrico e comercialização de smartphones, a atividade de conceção de produto e fabrico é fulcral para o sucesso do produto oferecido, pois é a principal vantagem competitiva da solução oferecida aos clientes. Já uma atividade de suporte, é, por exemplo, a gestão geral, finanças, questões legais, etc. São importantes, mas não são as atividades principais, as estratégicas e que criam valor para o negócio.
Já quando falamos de serviços, aplica-se o mesmo modelo. Na área dos serviços, as pessoas desempenham um papel fundamental no sucesso que tem aquela solução, pois ao contrário dos produtos, o serviço é produzido e comercializado num único momento. Aqueles funcionários aparentemente insignificantes, mas que lidam diariamente com o cliente, são fulcrais para o desempenho da empresa.
Atualmente vivemos uma crise no que toca ao serviço ao cliente. Temos à nossa frente um funcionário muitas vezes insatisfeito, exausto, mal pago, enfadado, que trata mal o cliente e, no fim, perdemos todos, incluindo a empresa. A minha questão é: será que a melhoria das condições de trabalho é a única solução?
Estudamos que a satisfação tem fatores intrínsecos e extrínsecos que a influenciam. Haverá fatores extrínsecos, mas também intrínsecos à pessoa para ela estar satisfeita. O problema aqui não é de fácil resolução. Era interessante estudar as razões pelas quais os operacionais dos festivais de verão atuam assim. Em primeiro lugar, há que esclarecer se os profissionais em causa lidam diretamente com a produção do serviço em si, ou seja, lidam com o cliente diretamente. Se sim, Pergunta 1: são muitos a atuar assim como no caso da Sónia Tavares ou foi só azar? Pergunta 2: Porque atuam assim? Insatisfação? Puro abuso de poder? É que se se sentem poderosos e abusam do seu poder, já não falamos de insatisfação.
Por outro lado, penso que a cultura também influencia no mau resultado. O advento do consumo de massa e do desenvolvimento dos primeiros modelos de marketing a partir da 2.ª metade do século XX advogava que o cliente estava em primeiro lugar. O sucesso do negócio dependia essencialmente da forma como nos focávamos nele, da conceção à entrega do produto/ serviço. O espírito e filosofia “serviçal” era a melhor prática nas empresas.
Hoje vejo sinais muito contrários. Quem não esteve num café e em vez de ouvir uma música discreta e o som leve dos talheres e louça ouve os funcionários a falar alto entre si por detrás do balcão sobre as suas vidas pessoais? Posso ser só eu que procuro tranquilidade e não pedi confissões pessoais a alta voz? Ou será um fenómeno generalizado? Tudo muito num espírito “cool”, mas que esquece quem está a pagar aquele estabelecimento, o cliente. Quem não experimentou estar insatisfeito com o serviço e levar com uma resposta assertiva e pouco respeitosa para com o cliente? Muitas vezes, vinda de funcionários Geração Z, que são muito assertivos, mas fora da realidade. Ainda este mês numa gasolineira levei com os olhos revirados de uma menina enfadada que me explicava algo sobre o método de pagamento e eu não percebia à primeira. Eu pedi-lhe desculpa e exaltei a sua alta sabedoria. Questiono-me: estas pessoas estão insatisfeitas e atuam como “Não quero saber”, ou a cultura mudou e elas sentem-se empoderadas para mudar o jogo do poder do cliente para elas?
Por vezes parece que estes pequenos ditadores do apoio ao cliente suportam-se sempre em micro regras e elevam-nas a categoria de lei universal e fundamental. Falamos de técnicos, administrativos, assistentes operacionais, mas que têm contacto direto com o cliente e são a imagem da empresa. Tudo o que eles fazem é em nome da marca que representam. Algum passo em falso, é menos um cliente, ou muitos.
Desde o documento não submetido na data e hora à pequena transgressão punida com “pena de prisão”, estes profissionais ficaram com um poder que não é proporcional à sua responsabilidade. Isto acontece em todos os setores e põe em causa os principais objetivos das organizações, resolver problemas para as pessoas. Pensem que se substituirmos a Sónia Tavares ou um funcionário qualquer de walkie-talkie que se passeia nos festivais de verão, vamos notar mais a ausência de qual? Se calhar o primeiro, mas o outro também é importante e se todos forem como os do croquete? Temos um sério problema… E às vezes basta um para destruir uma empresa.
Já no que toca aos serviços públicos, pela experiência própria, sempre foi uma relação desigual a do funcionário/ utente. Em teoria, se sou contribuinte, mereço respeito e serviço célere e eficiente, pelo contrário sempre que me desloquei a uma repartição, tinha de usar da minha diplomacia e pinças no discurso para não ofender o oficial das finanças ou segurança social, o qual guardava do seu lado a faca e o queijo para resolver intricados puzzles administrativos. Caso me desviasse um milímetro do “peço desculpa, por favor” e do sorriso amarelo forçado, poderia levar uma retaliação de ou adiar a resolução da sisífica tarefa do pagamento de um emolumento, do pedido de adiamento de um prazo qualquer ou de um deferimento de um processo penoso. A desorganização e complexidade administrativa também não ajuda. Hoje as coisas melhoraram muitíssimo com o digital e a ligação da informação, mas ainda encontramos estes guardiões do portão administrativo.
No meu estudo de doutoramento já submetido sobre medidas de avaliação de recursos humanos, estudei em particular o setor da aviação e percebi que o chamado “pessoal de terra”, aquele que presta os serviços de transporte aéreo em terra, é o mais insatisfeito deste setor. Num estudo já apresentado em conferência, as conclusões a que cheguei é de que esta parte da força de trabalho mostrava estar muito insatisfeita com quase todas as medidas estudadas, entre elas a satisfação com o salário, com a conciliação família/ trabalho, com a carreira e com os líderes. Ao contrário, registei níveis de satisfação opostos e intenções de saída invariavelmente menores com a classe de pilotos. Este pessoal de suporte não aufere os salários de um piloto ou até de um técnico de manutenção. Pode-se dizer que é um serviço de suporte, mas acrescentará menos valor do que o de um piloto, por exemplo? É uma discussão interessante a ter. Se um piloto é essencial pela vertente comercial e de segurança, o outro profissional também o é. Desde a segurança, até à pontualidade, até à experiência positiva dos clientes.
O custo com pessoal é uma fatia substancial dos custos operacionais de uma companhia aérea e o estatuto social do piloto é algo que lhe dá mais poder negocial do que àqueles profissionais. As empresas de transporte e outras têm de começar a praticar outras políticas, pois estes profissionais são fulcrais para a entrega de um serviço de pessoas para pessoas. Por outro lado, temos de estudar mais a fundo o fenómeno. Bastará melhorar as condições de trabalho? As pessoas mudam também com esta melhoria? Nas pesquisas a que tive acesso, o problema não são apenas os focos de insatisfação na força de trabalho. Estarão os recursos humanos a ser o parceiro estratégico das empresas o qual se deve focar nos objetivos de negócio, neste caso a satisfação do cliente ou mais preocupado em processos e narrativas desgarradas da estratégia da empresa? Curiosamente, Michael Porter costuma colocar os Recursos Humanos como “atividade de suporte” e há outros autores que não concordam, colocando-os como importante fonte de vantagem competitiva. Os Recursos Humanos, desde o recrutamento, deveriam ser atividade primária e estratégica da empresa.
Outro problema é o “foco no cliente” muitas vezes estar obcecado com margens de negócio financeiras rápidas e não num serviço de excelência a longo prazo. Assim, pode descurar aquela classe de trabalhadores importantes, mas menos visíveis. Estamos numa era em que as narrativas de recursos humanos defendem a “felicidade” do colaborador e reclamam a área de RH como a mais importante. Mas depois temos os comerciais a dizer que o fulcral é a satisfação do cliente. Em que ficamos? Se todos são importantes, algum é importante? Existem várias empresas dentro de uma ou uma só? Como conciliar os vários interesses numa estratégia única?