Quando há dias todos ouvimos e lemos o Governador do Banco de Portugal (e antigo ministro das Finanças) a afirmar que “a inflação permanece, ainda, um fenómeno temporário”, podíamos pensar que estaríamos num qualquer universo paralelo saído do último livro do físico Sean Carroll. Nessa mesma declaração, Mário Centeno pediu aos portugueses “paciência” e declarou que “na Europa não se observam efeitos de segunda ordem”, ou seja, por exemplo, a subida de salários por via da pressão inflacionista. Um dia depois, uma centena de produtores de leite realizou uma manifestação, em desespero, pela subida do preço do leite no produtor. Num artigo anterior escrevi sobre a importância de dizer a verdade, e por isso, talvez se deva começar por uma análise ao preço do leite no produtor e com isso ajudar a perceber a fortíssima probabilidade de as palavras do senhor Governador do Banco de Portugal não encontrarem sustentabilidade na realidade.
O sector do leite e a crise dos produtores
Olhemos, então, para os nossos agricultores e para as suas reivindicações. O pedido, feito num formato de ultimato para evitar a falência de todo um sector, foi no sentido de aumentar o preço no produtor de 0,30€/kg para os 0,38€/kg (valor praticado em média na União Europeia). Uma primeira nota para o senhor Governador, no caso de ser concretizada esta pretensão, teríamos uma subida de 26% no preço do leite no produtor, com todo o impacto de uma majoração de preço com essa dimensão. Justifica-se este apelo e pretensão por parte dos produtores de leite? Na minha opinião sim e, para tal, olhemos para alguns dados.
Comecemos pelos custos de produção. Cerca de metade dos custos de produção do leite está na alimentação dos animais. Para isto muito contribui o custo das rações, dos cereais que as compõem e dos fertilizantes que intervêm em toda a produção agrícola por detrás destes produtos. O preço de um dos principais produtos na base dos fertilizantes registou em 2021 um aumento de cerca de 100%, sendo que o índice que mede o preço dos fertilizantes (North America Fertilizer Price Index), cresceu cerca de 125% desde Janeiro. Continuando a análise, observamos que, no geral, a alimentação de uma vaca leiteira é dividida em 20% de ração e 80% de forragem. A sua necessidade de fibra e de uma alimentação equilibrada que garanta o bom funcionamento do sistema digestivo do animal, obriga a isso. Em Portugal (e na Europa) a base principal da forragem é o milho e este viu o seu preço explodir nos mercados em torno de 90% desde Abril. Se juntarmos a isto a terrível subida nos custos energéticos, que obviamente afeta todas as unidades de produção que usam eletricidade e equipamentos movidos a gasóleo e o aumento dos custos com a mão de obra (sim, senhor Governador, estamos a sentir um crescimento dos valores dos salários e escassez na oferta para colmatar a procura), então, só podemos concluir, que os custos de produção de leite registaram aumentos significativos, com esmagamento ou mesmo destruição das margens dos produtores.
Passemos, ainda, a uma comparação com a restante realidade vivida na União Europeia, de forma a percebermos a dimensão real do problema e a estranha idiossincrasia portuguesa na definição de políticas para o sector. Segundo o relatório da Comissão Europeia de 4 de Novembro sobre o sector do leite e o seu preço, podemos observar que o preço médio por kg é de 0,38€, o que compara com os 0,30€/kg pagos em Portugal (valores referentes a Out/2021). Quando comparamos estes dois valores com o período homologo, percebemos que a União Europeia viu o seu preço médio subir 0,03€/kg, enquanto Portugal registou uma queda no preço de 0,003€/kg, em contraciclo com os restantes mercados. Ou seja, a União Europeia viu os preços médios do leite crescerem 10%, enquanto que em Portugal os preços caíram 0,6%, segundo o mesmo relatório. A título de curiosidade, países similares a Portugal e grandes produtores de leite registaram um comportamento muito diferente do português: Espanha +6,5%, França +5,4% e Itália +6,5%. A Alemanha viu os seus preços no produtor subirem 14,2% neste mesmo período. Para terminar a análise ao relatório não posso deixar de reforçar que Portugal foi mesmo o único país a ter uma queda no preço no produtor, sendo que o segundo país com uma menor variação foi o Chipre, que viu o seu valor crescer 1,9%.
Como corolário, importa questionar: como podemos assistir a uma queda no preço na produção em Portugal, quando os custos de produção subiram mais de 30%, continuam a subir de forma sustentada e não conjuntural e todas as economias refletem isso e apontam essa subida como o cenário natural e obrigatório? Porque, o nosso mercado é controlado, porque o Governo intervém, porque as grandes superfícies pressionam e é criado um cenário irreal que é alheio ao consumidor final, mas que destrói todo um sector.
A nossa agricultura e como ela ajuda na análise às afirmações de Mário Centeno
Perante isto, percebe-se como pode o senhor Governador dizer que a inflação não é um problema porque a mesma não está a refletir a realidade? A verdade é que os preços nos produtores estão a subir, ou a precisar de subir, e que isso, mais tarde ou mais cedo, vai ter impacto nos preços finais ao consumidor e, respetivamente na inflação. Este estrangulamento e controlo é positivo? Na minha opinião não, porque destorce o mercado, porque tolda a realidade e porque, no limite, vai destruindo o tecido produtivo português.
Pegando, mais uma vez no exemplo do leite, era fundamental que o mercado ajustasse os preços, incorpora-se a inflação sentida nas matérias primas, na energia e nos custos salariais e refletisse tudo isso no valor final do produto à saída do produtor, em linha com a União Europeia. Este movimento levaria, obviamente, a um aumento do preço final ao consumidor, mas a uma maior justiça e transparência, num mercado que se diz livre e incorporado na economia mundial, mas é profundamente controlado e, neste caso, totalmente artificial.
Transpondo o leite para todo o sector agrícola, 2021 está a trazer-nos uma possível alteração significativa do paradigma na oferta alimentar e na relação dos produtores com as grandes superfícies. Pela primeira vez na história recente, a força passou para o lado dos produtores. A escassez na oferta, o aumento significativo dos custos de produção e a ausência de alternativas por parte dos compradores, têm levado a um endurecimento nas negociações por parte das marcas. Aumentos de 10% nos preços, passaram a ser normais (e até baixos). Não existe garantia de produto em sectores como o queijo, a carne ou os cereais. A procura (e o consumo) superam em muito a quantidade produzida e disponível. Esta alteração de paradigma terá, obrigatoriamente, de se refletir nos preços finais. Mais uma vez, teremos uma pressão forte e natural na inflação.
Importa, ainda, dar uma nota de algumas razões pelas quais a oferta estar tão condicionada no sector agrícola e refletirmos sobre as nossas próprias responsabilidades. Não foi só a pandemia que fez parar todo o sector produtivo, levando a quebras assustadoras nas produções, reduções de stocks e dificuldades na distribuição e produção. Algumas decisões políticas, contribuíram substancialmente para alguns destes desequilíbrios. Analisando, uma vez mais, o sector do leite, a pressão ambiental para a redução do número de bovinos face ao seu impacto nas alterações climáticas, levou a que, obviamente, a produção tenha sofrido. Não chega querermos tornar o mundo mais sustentável. Não chega defendermos medidas de sustentabilidade e de redução de emissões. Nada disto chega quando continuamos a querer consumir o que já consumíamos ou mesmo aumentar essa pressão consumista. Existe um claro desequilíbrio entre o que se defende e o que se faz dentro de portas (e não estou com isto a fazer qualquer referência ao “incidente” de confundir estufas com túneis, embora me pareça paradoxal e exemplificativo do que se passa atualmente na nossa sociedade). É por isso importante, que exista uma consciencialização do papel de todos e dos impactos das nossas decisões e atos.
Como assumir a verdade pode (e deve) salvar um sector
Em resumo, é inevitável que a inflação suba de forma efetiva e é fundamental que se entenda que não assumir isso é dar informações erradas aos cidadãos e levar a que estes possam, no seu dia a dia, tomar decisões danosas para si e para as suas famílias. O caminho tem de passar por perceber que estes ajustes são necessários e que os mercados terão de ser ajudados, muito provavelmente, com uma alteração das políticas monetárias, com todos os impactos resultantes dessa decisão. Não podemos continuar a sacrificar o tecido produtivo com garrotes artificiais, para manter a popularidade. A situação é séria e é fundamental que se definam políticas de verdade e de respostas concretas, porque o futuro dos portugueses não termina a 30 de Janeiro. Se nada for feito, provavelmente antes disso terminará o futuro dos nossos produtores de leite.