Quando na semana passada, abordei o conceito de estagflação, ainda não tínhamos os dados mais atuais da inflação nos EUA que, apenas foram conhecidos nos últimos dias. Preocupava-me um aumento dos preços que não me parecia ser pontual e um risco elevado de estagnação ou mesmo queda do PIB. Adicionei a estas variáveis a questão da dívida pública por ser um fator de risco face a uma eventual necessidade de subida de taxas de juro. Uma semana depois somos confrontados com uma taxa de inflação de 6,2% (acumulado nos últimos 12 meses), o valor mais alto registado na economia americana nos últimos 30 anos. A FED, que nos últimos meses se vinha a desdobrar em comentários de como a inflação seria resultado de um efeito normal provocado pela retoma do consumo no momento pós pandemia, mas que seria compensado por um ajuste natural na oferta, vem agora avisar que tal poderá não ser assim e que podemos assistir em 2022 a uma subida das taxas de juro. O próprio Biden já assumiu que a redução da inflação é uma das principais prioridades.

Muito se tem escrito sobre este tema e, esta semana, assistimos, pela primeira vez, a um líder partidário português assumir numa entrevista que este pode ser um problema que potencialmente pode “não correr bem”. Importa, para quem não acompanha a economia diariamente, mas que certamente já sente ou irá sentir o impacto deste movimento, desmontar as variáveis, de forma a que todos possamos ter a consciência do período ímpar que o mundo está a viver.

Inflação pós pandemia – um indicador com várias causas

Comecemos pela inflação e pela explicação mais fácil dada por quase todos os governantes nos últimos meses: os preços estão a subir porque após um período de constrangimento do consumo por via dos confinamentos e regras Covid, a procura subiu substancialmente não tendo sido acompanhada pela oferta. No entanto, era expectável que este desequilíbrio fosse corrigido e que o risco para as economias fosse minorado, ou mesmo, eliminado. Não vou afirmar que os políticos faltaram à verdade, mas, assumo sem grande dificuldade, que, no mínimo, foram imprecisos nas suas declarações. A forte escalada de preços nos combustíveis e matérias primas que já se sente desde o início do ano, era um sinal mais que evidente que outros fatores poderiam estar a ocorrer e que outro cenário poderia mesmo bater-nos à porta. Bem sei que para algumas pessoas há várias verdades, mas esta é uma variável que tem uma importância extrema que no final deste artigo irei demonstrar.

Focando-nos então na subida dos preços, olhemos para as tais variáveis que, já há muito, “gritavam” em todos os indicadores e cotações conhecidas, num “não verbal” assustador que mesmo alguém não conhecedor de economia conseguia decifrar. A primeira variável é precisamente a crise energética. Com a subida vertiginosa dos preços do gás natural, algo que já abordamos em artigos passados, mas que ainda esta semana registou mais dois episódios que potenciam ainda mais o problema (a crise na Bielorrússia e o conflito entre Marrocos e a Argélia), toda a economia é afetada. Não são apenas os preços da energia para os consumidores finais, nem o preço da gasolina, como se isso não fosse suficiente para ter impacto no nosso dia a dia. As fábricas funcionam a eletricidade, os processos produtivos incorporam uma parte relevante em custos energéticos, os transportes viram os seus custos subir e repercutiram isso no custo dos bens. De uma forma simplista conseguimos perceber que não é só nos preços diretos sentidos pelos consumidores, mas, acima de tudo, no impacto que esta crise tem no processo produtivo e no preço dos bens a apresentar ao mercado que se provoca uma subida na inflação. Para fechar esta primeira variável alguns dados: preço do petróleo está quase em máximos do ano e a subir mais de 100% face a 1 de Janeiro, o gás natural na Europa subiu cerca de 500% este ano e o trigo está em máximos do ano a subir cerca de 50% em relação a Dezembro de 2020. Bastava quase ler esta última frase para perceber que a inflação, não só, não está nos valores que nos dizem, como não é algo pontual e conjuntural.

Uma segunda variável prende-se com a crise nos abastecimentos. Já internacionalmente mencionada como a crise dos contentores é um pouco mais que isso. Uma paragem brusca da economia, como a que sentimos, resulta num cenário, para o qual, o mundo não estava preparado. Um dos mais complexos e brilhantes sistemas do mundo (a circulação global de contentores) parou por completo e não é possível reiniciar o sistema ao ritmo que a economia necessita. Portos com carga acumulada ou a aguardar despacho, e estaleiros de contentores vazios parados sem forma de serem enviados para os seus destinos, são uma assustadora e silenciosa realidade. Este é um processo que os mais otimistas dizem que estará solucionado a partir do segundo semestre de 2022, mas, há também quem augure que apenas no inicio de 2023 teremos a circulação de contentores solucionada. Este “constrangimento” limita fortemente o acesso às mercadorias e bens e leva a que a sua escassez agrave o desequilíbrio entre a oferta e a procura, e, consequentemente, o aumento do preço final.

Finalmente, quero juntar a questão laboral. Alguns de nós já ouvimos ou lemos que, em alguns sectores, se está a registar a falta de mão de obra. O turismo e a restauração, a título de exemplo, queixaram-se desse facto, mas o problema não é tão simples. Os efeitos da pandemia também impactaram na forma como as pessoas passaram a olhar para as suas carreiras, para a sua relação com o trabalho e para as compensações que seriam realmente importantes. Os abandonos voluntários, por parte de colaboradores começaram a sentir-se ainda durante a pandemia, mas agravaram-se com o fim do teletrabalho e com o “regresso à normalidade”. Conhecido como o fenómeno “da grande renuncia”, milhares de trabalhadores não regressaram aos seus postos e com isso originaram dois novos fatores: crise na mão de obra e aumento significativo dos salários. Como exemplo deixo um valor que deve alertar não pelo que significa, mas acima de tudo pela sua dimensão: 4,3 milhões de norte americanos deixaram os seus empregos em Agosto de 2021, ou seja, cerca de 3% da força de trabalho americana. As empresas não estavam preparadas para este fenómeno e resultou em mais duas variáveis que levaram ao aumento de preços nos produtos finais: redução da produção e aumento do custo do trabalho na produção.

Em resumo, podemos facilmente concluir, que se trata de um processo estrutural e não conjuntural e que a inflação que estamos a registar não irá desaparecer sem que para tal nada seja feito. A economia está a sentir os impactos deste fenómeno e os bancos centrais vão ter que acabar por intervir para conter os danos, sendo responsabilidade dos governos criar mecanismos que defendam as economias e as pessoas dos efeitos dessas mesmas decisões.

Subida das taxas de juro, endividamento e a importância de falar verdade

Perante este cenário, não creio que restem muitas dúvidas que as taxas de juro vão subir. Reino Unido e Estados Unidos serão os primeiros, mas dificilmente a Europa não seguirá este caminho. É fundamental, para não criar um desequilíbrio, que ponha em causa o crescimento económico e a estabilidade das economias, que se contenha a inflação. Uma subida das taxas de juro cria um constrangimento ao consumo e ao investimento, por via do aumento do custo do dinheiro, e um incentivo à poupança. Este primeiro impacto permite estancar a subida dos preços, mas é preciso fazer mais, e é aqui que tenho as minhas dúvidas. Antes de passarmos ao que é necessário implementar além da alteração às políticas monetárias, vamos só perder uns segundos com um impacto relevante da subida dos juros.

As economias estão super endividadas. Já abordamos na semana passada a dívida americana, mas as restantes economias não estão muito melhores. Com raríssimas exceções (na Europa conta-se o Luxemburgo e alguns países nórdicos), os países vivem num cenário pós pandemia onde a sua dívida pública se agravou exponencialmente. Ora a dívida e o cumprimento da mesma sofrem com um aumento das taxas de juro porque o pagamento desta a isto está indexado. A pressão sobre as contas publicas será elevada e a necessidade dos governos aumentarem as suas receitas para fazer face a este aumento de custos será uma realidade que poderá levar à tentação de um agravamento da carga fiscal. Não foi inocente a nota de rodapé desta semana onde se constava que o governo tinha a intenção de lançar novos impostos em 2022 bem como a aprovação em Conselho de Ministros de uma proposta de lei para cobrar contribuições extraordinárias no próximo ano.

Perante isto o que é necessário que se faça mais? Diria que são importantes três decisões adicionais, e que infelizmente não acredito que os políticos tenham a coragem de as fazer. Em primeiro lugar é necessário combater a crise energética com pragmatismo e não com meias verdades, carregadas de frases politicamente corretas, mas vazias de soluções. A energia “verde” ainda não é suficiente para alimentar as necessidades do mercado e a forma drástica como se pretendeu realizar a transição e a descarbonização foi, não apenas, irrealista como nefasta (como aliás se está a ver pelo que está a acontecer nos mercados). É importante fazer este caminho, mas fazê-lo de forma sustentada. Como? Criando alternativas à produção de energia numa fase intermédia. Esta necessidade tem uma resposta direta já dada pela China, França e Estados Unidos, mas que acredito (e defendo) que outros países terão de seguir: a produção de energia nuclear como complemento à produção de energias renováveis. Adicionalmente, é importante aumentar de forma substancial a capacidade produtiva das energias verdes. No entanto, quero ainda acrescentar uma última necessidade. Não podemos defender uma revolução energética sem perceber o papel de todos nesta crise. É crucial que, além de aumentarmos a produção e compensarmos o desequilíbrio que, nós próprios criamos com uma transição energética mal feita, se reduzam os consumos. Não é possível defender um mundo mais verde e mais sustentável, diminuir a produção de energia e, ao mesmo tempo, aumentar as necessidades de consumo. Os novos bilionários das cripto moedas deveriam, por exemplo, ter noção da quantidade de energia que consomem na mineração dessas mesmas moedas. No entanto, o mundo (e os políticos) assobiam para o lado.

Em segundo lugar é preciso olhar para a dívida com noção da realidade e sentido de Estado. A dívida pública é um monstro que consome recursos, pressiona o crescimento económico e não irá desaparecer se nada for feito. Era importante existir a coragem e a transparência para se trabalhar num não agravamento da dívida, numa diminuição efetiva da despesa do Estado e de uma menor intervenção do mesmo na economia. Não é possível desenhar um orçamento onde, à partida, já se assuma que se vai gastar mais do que se vai arrecadar em receita. Isto é desonesto para com as pessoas porque lhes dá a aparência de uma vida mais fácil no dia a dia, ao mesmo tempo que se lhes boicota o futuro e as oportunidades. E, era importante, que de forma honesta e fria se equacionasse perdões de divida. Eu sei que ninguém quer ouvir falar disto pelo impacto que teria e pela imagem que passaria a quem não consegue cumprir, mas a verdade é que não se consegue fazer face às responsabilidades decorrentes do pagamento da dívida e deve existir um meio termo onde os governos possam alcançar um acordo para uma nova realidade equilibrada e sustentada.

Finalmente, a verdade. A importância de falar verdade. Os governos e os políticos sofrem de um mal que, mais que os afetar a eles, afeta de forma devastadora quem os elege, ou seja, nós, o povo. Segundo Maquiavel, na sua obra O Príncipe, existem dois objetivos de um político: alcançar o poder e manter o poder. Eu percebo estes dois, mas a causa pública necessita de um terceiro: usar esse poder para implementar políticas que beneficiem as pessoas, que criem elevadores sociais, que diminuam desequilíbrios, que garantam saúde, educação e segurança, e que ofereçam estabilidade e crescimento. Infelizmente, o perfil médio dos nossos políticos, não aprendeu este último, e importante objetivo. Não vou esmiuçar este ponto vou apenas concluir com a importância da verdade.

É fundamental que os políticos digam a verdade. Não é possível continuar a mascarar as notícias, usar e deturpar os indicadores económicos por forma a passar uma mensagem que nos seja conveniente, porque isso tem impacto e o primeiro impacto que tem é nas pessoas. As pessoas todos os dias tomam decisões com base nas informações que recebem. Estamos a falar de decisões de investimento, de poupança, de consumo, se compram um carro novo, se mudam de casa, se colocam os filhos num colégio, se fazem aquela viagem ou se colocam dinheiro numa poupança, entre muitas milhares de outras decisões. Estas decisões são suportadas nas informações e “verdades” que o seu governo, que os seus governantes e que as instituições lhe passam através da comunicação social. Não dizer a verdade, ou não dizer toda a verdade, é permitir que milhões de pessoas tomem decisões erradas ou potencialmente erradas e que sofram com isso. Dizer, ainda hoje, que uma inflação é passageira, quando já todos conseguimos ver que não só não o é, como pode levar a uma forte crise económica, é permitir que milhões de pessoas, de forma inconsciente, avancem com decisões que os vão prejudicar. Isto causa dano, porque se os governos se perpetuam, as economias acabam por recuperar, o impacto que o cidadão sofre pode ser, por vezes, irreversível, e esta consequência deveria ter repercussões de quem usa os indicadores ou os comunica com um viés não sendo totalmente verdadeiro com o grande pilar de uma sociedade: as pessoas.

Uma última nota face ao momento atual do país e da economia e um reforço da importância da verdade. Fazendo uma analogia futebolística, Portugal tem nos seus políticos o que a Primeira Liga tem de jogadores nacionais: os melhores jogam lá fora. Os nossos melhores estão fora da Causa Pública e, acredito, que ter uma verdadeira consciência da realidade pode levar a um movimento de atração dos melhores. A verdade pode levar a quem pode fazer diferente se sinta motivado a trabalhar para mudar uma realidade que cada vez é mais preocupante, porque os governos sobrevivem, as nações sobrevivem, a economia sobrevive mas as pessoas, essas por vezes não conseguem sobreviver.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR