“Esta questão da bondade, e não da bondadezinha, porque exige muita coragem associada, é, no entanto, e agora mais do que nunca, uma necessidade vital para todos nós. Nunca conseguiremos melhor sociedade civil nem melhores políticos, inverter o aquecimento global, evitar novas guerras generalizadas e mesmo mundiais, salvar a biosfera que estamos à beira de destruir, sem um acréscimo de bondade e do amor entre as pessoas“.
Quem o disse foi o Professor Domingos Neto, no prefácio de um excelente livro – Relação de Qualidade, do Professor António Coimbra de Matos. Importa pensar na diferença entre a bondade e a “bondadezinha”. É, na verdade, a segunda aquela pela qual se tem pautado o mundo nos últimos tempos. A “bondadezinha” é aquela mão paternalista passada pelo pêlo, é a opressão escondida em sorrisos institucionais, é o gritar a pulmões abertos das “ideias certas”. Mas o que são “ideias certas”? Esta procura desenfreada pelos ideais admiráveis?
A “bondadezinha” foi, por exemplo, o que vimos acontecer na Faculdade de Psicologia, no passado dia 15 de novembro, quando uma dezena de polícias terá sido convidada a entrar (pelo próprio poderio da faculdade) para deter estudantes que estavam, veja-se bem, a falar: essa ameaçadora agência humana comparável ao homicídio. Porque é que uma situação como esta pode ser considerada bondadezinha? Porque, todos os dias, a Faculdade de psicologia (desde que a habito há quase 5 anos), tem sido um local de palavras mansas de poder em resposta a alunos com revogações legítimas. Nem falo apenas do debate climático, falo do dia-a-dia, onde alunos criam petições, falam com os superiores, pedem mais ofertas de estágios, pedem prontidão na resolução de problemas, pedem refeitórios que não fechem às 19 horas quando há aulas até às 22h (sim, é verídico). A resposta, dos superiores, vem sempre clara, reta, aparentemente compreensiva e efectivamente inútil, sem respostas aos problemas. Há uma vontade de manter as aparências, de emitir comunicados bonitos e vazios. Onde estão esses adultos sábios, esses académicos de mão cheia, que nos prometeram? Seria pedir muito que estivessem do lado dos alunos, seria pedir muito que um Professor se tivesse chegado à frente da polícia para lhes indicar a saída?
O mais preocupante é que o que aconteceu na quarta-feira não é sobre clima nem sobre alunos nem universidades, é sobre uma sociedade doente. Uma sociedade feita de palas, porque não é por não as vermos que não as temos. Olhamos cada vez mais apenas os nossos grupos, os nossos “iguais”, e os que tanto proclamam pela igualdade de tudo e de todos são muitas vezes os que utilizam as palas mais grossas. Os superiores veem um mundo onde as regras têm de ser mantidas e todo o questionamento é censurado; os ativistas climáticos veem um mundo onde só o ambiente tem de ser salvo e tudo o que vier para o destruir mais uma milésima é venenoso; os políticos veem um mundo onde só o poder interessa e toda a ameaça de poder inimigo é para ser abatida; as comunidades LGBTQI veem um mundo onde os géneros e todas as características que os definem têm de ser uma coisa tão intocável e polida que chegará o dia em que nada poderemos dizer sobre ser homem ou ser mulher. Nunca vivemos num mundo com tantos grupos, com novas formas de segregar e de separar. A pluralidade de opiniões tornou-se, mais do que nunca, uma desculpa para não compreender todos os que fazem parte de um grupo diferente. Não estão em causa as “lutas” de cada grupo, mas sim a cegueira de cada um dos grupos, quando assumem que todas as outras lutas são inimigas da sua e impossíveis de coexistir.
Pegando na crise política em que mergulhou o país, porque é que um partido como o Chega, que tem vindo a crescer como nenhum outro, é tão ostracizado, por vezes até odiado? É pelo discurso populista? É pelas ideias retrógradas? Ou será porque deixámos de nos permitir sentir aquilo que um grupo de pessoas tão diferente do nosso sente? Que ódio é este, que segregação é esta? Está na História, com H grande, que tantas das maiores desgraças mundiais começaram pela fome, pela crise, pelo dinheiro, mas principalmente por um sentimento de revolta inigualável, uma revolta onde se juntam uma humilhação e incompreensão profundas de um grupo sobre outro. Como não entender que as pessoas se sintam revoltadas, num país onde, ainda há dias, ouvi presencialmente, uma doente espera até setembro de 2025 para uma consulta de psicologia no SNS. Como não entender quando os salários não pagam uma renda, quando os transportes públicos são sardinhas em lata, quando não há professores, quando não há médicos, não há psicólogos à disposição dos utentes, quando não há tudo o que sabemos.
Não sou apoiante do Chega nem de nenhum partido, sinto-me saudavelmente apartidária de momento, mas não é preciso concordar com uma ideia para ter o mínimo de compreensão por ela ou por aqueles que a sentem. Porque é que temos palas tão grossas para uns e não para outros? Porque é que o programa de Ricardo Araújo Pereira, uma das figuras mais consensuais dentro dos portugueses, tem tanto sucesso? Porque nos faz rir, sorrir ou simplesmente distrair, certamente. Mas poucos são os que se perguntam sobre o porquê de o humorista nunca ter convidado o líder do Chega para o programa, quando convidou todos os outros líderes de partidos. Está no seu direito, claro está, mas o que importa talvez não seja o que alguém decide fazer, mas termos a capacidade de pensar e de refletir sobre o porquê de o decidir fazer. Não nego que um partido como o Chega apresenta ideias extremamente retrógradas, e que eu próprio condeno, mas não é o Chega que está no poder e, no entanto, as instituições estão cada vez mais rígidas, fechadas… fascistas? E será que negar, diminuir, pisar todo um grupo não será uma espécie de forma de fascismo do pensamento? Porquê ter medo de enfrentar o que achamos que está errado, aceitando-o para beber chá em nossa casa, diga-se de passagem.
Se a psicologia, a psiquiatria e a própria natureza humana nos ensinaram qualquer coisa, e se sabemos a importância do meio, do cuidado e do amor para um bebé, porque é que deixámos de saber a importância do cuidado e do amor na vida social adulta, com todas as dimensões que ela implica? Amor é uma palavra demasiado vasta para ter apenas a ver com relações pessoais. Amor talvez seja uma forma, quase extinta, de ver o mundo, uma forma de responsabilidade pelo outro e pelos outros, uma aceitação plena de que aquilo a que chamamos maldade, e aqueles a quem chamamos “vilões” não se criaram e adubaram sozinhos. Todos eles, sem excepção, são produto do ódio que lhes damos, das revoltas que não ouvimos, das pessoas que ensurdecemos, das palavras que fechámos dentro dos outros, sem lhes darmos possibilidade de as ouvir.
Este texto construiu-se na minha cabeça através da leitura de um livro, daqueles que nos fazem pensar e apaixonar (outra vez) pela espécie humana, e por tudo o que ela tem de bom, e de mau. E termino a citá-lo, porque, mesmo para quem não percebe nada de psicanálise, esta frase tem muito que se lhe diga:
“São as mudanças (de predomínio) da competição para a cooperação, do narcisismo para a objectalidade, (…) da culpa para a responsabilidade, da desconfiança para a confiança (…) é a preferência pelas relações de complementaridade e não de comunhão identitária“. – Professor António Coimbra de Matos