Corriam os primeiros anos do século XIII quando um amplo movimento de jovens europeus estabeleceu como seu objectivo recuperar Jerusalém, perdida para os muçulmanos. O entusiasmo e o esforço desses milhares de jovens que se dispuseram a avançar, desarmados, protegidos apenas pela sua Fé, para o encontro com o inimigo, foi em vão pois nenhum deles conseguiu chegar à Terra Santa. Apesar de fracassada, a sua iniciativa não caiu no esquecimento e ficou conhecida na História como a Cruzada das Crianças.
Cristina Roldão, a socióloga e colunista do Público, também promove uma cruzada das crianças, na qual, aliás, e à semelhança de outras activistas woke, insiste há anos. O seu objectivo não é chegar a Jerusalém, mas sim mudar — ou, na sua fraseologia, “descolonizar” — a História que se ensina nas nossas escolas básicas e secundárias. E, como é perseverante, escreve um novo artigo sobre esse assunto para bater um pouco mais nos manuais escolares que ajudam a ensinar essa disciplina a crianças e adolescentes. Já anteriormente critiquei esta cruzada de Cristina Roldão contra os manuais escolares. Fi-lo — e continuo, agora, a fazê-lo — porque é importante que os portugueses possam ter acesso ao contraditório, mas sem quaisquer ilusões quanto ao peso dos meus argumentos junto da colunista do Público. E, de facto, imperturbável e impermeável à argumentação, Cristina Roldão volta à carga nos mesmos termos em que já o havia feito, o que não admira, pois tem um objectivo político a atingir — a alteração dos programas e manuais escolares — e não se desvia nem desviará um milímetro dessa sua rota.
Desta vez, e para tentar dar mais credibilidade à sua mensagem, começa por se apoiar na ONU e no discurso do seu secretário-geral por ocasião do Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos. Ou seja, encosta-se a uma organização política e a um político, o que faz todo o sentido sabendo-se que há activistas na ONU que andam há anos a tentar meter o bedelho no nosso ensino da História, e que o engenheiro António Guterres, por vontade própria ou por inerência do cargo, ou por ambas, veio há dias pedir aos governos de todo o mundo que introduzam conteúdos sobre a escravatura nos currículos escolares.
Os discursos que todos os anos Guterres debita neste Dia Internacional mereceriam por si sós vários parágrafos, mas isso levar-nos-ia para muito longe. Aqui quero focar-me na cruzada das crianças de Cristina Roldão e referir que as suas mais recentes censuras caem sobre o manual de História e Geografia de Portugal do 5º ano, da Raiz Editora, um livro escrito por Marília Gago e Paula Marinho e que contou com a abalizada consultoria científica de João Paulo Oliveira e Costa. A socióloga e colunista do Público ataca o manual por considerar que ele é “muitas vezes um condensado de glorificação nacional, romantização da violência e despolitização da história colonial”, o que deixa subentendido — pasme-se — que, para Cristina Roldão, o ensino da história colonial a crianças de 10 ou 11 anos de idade devia ser ministrado com carga política propositada. Essa carga deveria, aliás, na sua óptica, transcender o âmbito colonial e impregnar todo o ensino da História no 5º ano. É isso que explica que se indigne por as autoras do manual referirem que, com a expansão marítima, Portugal “pretendia melhorar as condições de vida dos seus habitantes”, em vez de explicarem aos alunos que, na realidade, se tratava apenas de melhorar as condições de uma “minoria privilegiada” que explorava e oprimia a maior parte do povo.
Contudo, o que revolta ainda mais Cristina Roldão é que o manual da Raiz Editora apresente a expansão colonial como “uma grande aventura, uma espécie de expedição científica”, quando, para a socióloga, essa expansão terá sido, nas suas próprias palavras, “estupro, escravatura, morte e arrebanhamento de recursos” — sim, Cristina Roldão reduz a expansão portuguesa a essas quatro facetas —, deixando implícito que devia ser isso, que, neste capítulo do nosso passado colectivo, importaria ensinar às crianças do 5º ano. Isso e também, claro está, “as desigualdades estruturais e o racismo” que, na sua opinião, ainda hoje se fariam sentir e que seriam fruto dos Descobrimentos dos séculos XV e XVI.
E eu pasmo com esta visão das coisas. Em primeiro lugar porque a redução da Expansão portuguesa aos seus aspectos sangrentos e negativos é uma perspectiva tão parcial, tão fanática, que nem dá para comentar. Em segundo lugar, porque mesmo que essa perspectiva fosse acertada e equilibrada, seria um colossal erro pedagógico transmitir uma coisa dessas a crianças tão novas. Como já escrevi por várias vezes, o ensino da História não é uma loja de horrores. Não é esse o seu objectivo, muito menos neste nível etário. A aprendizagem da História, como a da vida e de muitas outras coisas, é algo que se vai fazendo, a pouco e pouco, por degraus ou etapas. Qualquer pessoa razoável, mental e emocionalmente amadurecida, perceberá que não faz sentido ensinar a crianças do 5º ano, as inúmeras violências de que a História é feita. Essas crianças crescerão e terão tempo e ocasião, adiante, para o perceberem.
Mas Cristina Roldão considera grave lacuna que o manual para o 5º ano da Raiz Editora não assinale que Portugal teve o “lugar cimeiro no tráfico transatlântico”, e exige que sejam contadas às crianças as violências cometidas por portugueses no processo dos Descobrimentos. Sendo coerente, também deverá querer que, quando, no 7º ano, a História de Portugal der lugar à História Universal, os manuais sublinhem, ao falar da Ásia, que vários povos asiáticos usavam o terror como forma de domínio político e que esfolavam pessoas vivas ou que as decapitavam para fazerem intimidantes pirâmides de cabeças; ou que, chegados ao 8º ano, ao caracterizar as principais civilizações de África, ponham em destaque a prática de numerosos sacrifícios humanos — no reino do Daomé, por exemplo.
Eu sou frontalmente contra esse tipo de abordagem e espero que os nossos decisores políticos, na área da educação, também o sejam. A violência e a crueldade são infelizmente gerais. Não foram nem são monopólio de nenhum povo, mas é muito pobre focarmos os nossos olhos e os dos nossos alunos, em especial os dos nossos alunos mais jovens, nos aspectos mais tristes e bárbaros da existência humana. É pobre, é aparentemente revanchista e não é educativo nem construtivo. O que é construtivo é a verdade histórica em doses e formatos ajustados à idade de quem nos ouve ou lê.
Entre adultos exige-se a verdade plena, claro, mas o que Cristina Roldão nos dá não é isso. Fui ler o manual da Raiz Editora para avaliar por mim próprio e verifiquei que a socióloga e colunista do Público distorce e omite tanto que me daria para duplicar a dimensão deste artigo — que já vai longo — o que não é aconselhável. Deixo, por isso, um exemplo, apenas, para ilustrar o que quero dizer:
Cristina Roldão indigna-se por as pessoas negras escravizadas surgirem, no manual da Raiz Editora, “entre as trocas comerciais” e “colocadas ao nível de produtos de origem africana (…), desumanizando-as mais uma vez”. Mas esquece-se de dizer que não são apenas as autoras do manual que assim as colocam. É, também, um documento de Hieronymus Munzer, do século XV, documento que o manual transcreve parcialmente (p. 164). Quererá Cristina Roldão que se omita ou falsifique ao gosto do politicamente correcto um documento que, como muitos outros nessa época, menciona os escravos negros junto com o marfim, a malagueta e outros produtos que se obtinham na costa de África? Não sei responder. O que sei é que a socióloga se esquece muito convenientemente de dizer que as autoras do manual tiveram o cuidado de colocar junto a esse pequeno documento de Munzer a imagem (ver abaixo) que mostra uma caravana de escravos a ser conduzida pelos sertões africanos e através da qual os alunos podem constatar com os seus próprios olhos que escravos africanos são pessoas de carne e osso e não mercadorias.
Mais. Ao mesmo tempo que transcreve Munzer, o manual também transcreve (p. 173) parte da crítica do padre Fernando Oliveira — um dos poucos que, então, a fez — ao tráfico de escravos: “Não se admite, nem a razão humana consente, que jamais houvesse no mundo trato público de comprar homens livres e pacíficos, como quem compra e vende animais (…)”. Cristina Roldão não valoriza nem menciona este excerto do padre Oliveira e esquece-se, ainda, de referir que as autoras do manual, ao falarem da população de Lisboa no século XVI, já haviam explicado (p. 161) que escravo é um “indivíduo que não tem liberdade nem direitos e que é tratado como uma mercadoria, podendo ser vendido”. Mais claro e escorreito do que isto é difícil.
Globalmente, o manual da Raiz Editora explicita a História de Portugal — repito e sublinho a palavra Portugal — de forma equilibrada e isenta, ajustada às idades a que se destina, e nele a temática da escravatura está bem tratada. Parabéns, por isso, a Marília Gago e Paula Marinho, e a outros/as autores/as de manuais que têm resistido à híper-crítica vinda dos activistas ditos anti-racistas. Sei que o wokismo está em crescendo e que um dos seus objectivos é alterar a História que se ensina nas escolas para assim condicionar, desde muito cedo, as novas gerações. Sei, também, que depois desta haverá mais cruzadas das crianças, dirgidas por Cristina Roldão ou outra pessoa qualquer. Espero, porém, que os/as colegas professores/as in loco e no Ministério da Educação continuem a atravessar sem tibiezas esta tempestade woke e que mantenham o barco do ensino direito e na rota certa.