Mário Soares não ficaria minimamente impressionado com o que se está a passar no Livre. A 13 de dezembro de 1974, escassos meses depois da legalização do PS, o primeiro Congresso do partido começou sob a ameaça da bala e do soco. Victor Cunha Rego, que estava a preparar o Congresso, revelou a Soares que “havia gente organizada que se preparava para tomar o PS de assalto e por dentro” — e, com o seu habitual tremendismo, disse-lhe que “estava tudo perdido”. Muitos anos depois, Soares lembrou a Maria João Avillez que entrou no Congresso “ao empurrão”, depois de um desconhecido que se auto-intitulava segurança lhe ter exigido que se identificasse. Viam-se pessoas armadas, num clima de “coação psicológica e mesmo física”. Ao passar a porta, Soares percebeu que havia “uma massa de gente praticamente desconhecida, excitada e excitável, sem experiência política, de propensão radical e que ninguém sabia de onde vinha e o que efectivamente queria”. O partido ainda nem sequer tinha ido a eleições uma única vez e já corria o risco de se transformar numa coisa radicalmente diferente. Soares conta que procurou “sobreviver como secretário-geral numa situação delicadíssima”. E, depois do Congresso, deu-se “a primeira grande sangria” do partido — mas o que era essencial no PS sobreviveu.
Francisco Sá Carneiro também não ficaria minimamente impressionado com o que se está a passar no Livre. No primeiro congresso do PSD, a 23 de Novembro de 1974, a liderança estava ameaçada por uma facção que queria entregar o partido à revolução. Nas várias intervenções, houve apelos à “construção de uma sociedade socialista”, críticas aos “vícios do sistema capitalista”, pedidos de “socialização dos meios de produção”, declarações de apoio a um sistema de planificação da economia e explicações sobre a inevitabilidade de uma política de nacionalizações. Quando o economista Alfredo de Sousa tentou defender políticas económicas liberais, nem sequer o deixaram acabar de ler o seu discurso. Ao ouvir tudo isto, Mota Pinto virou-se para outro dirigente do PSD e sussurrou-lhe: “Qualquer dia estamos à esquerda do MRPP…”. Para conseguir manter o controlo e a liderança do partido, Sá Carneiro fez vários exercícios de equilibrismo retórico e negociou concessões temporárias.
Em momentos de convulsão partidária, estes são os dois caminhos possíveis: a ruptura ou a negociação. Mas, no Livre, não há uma coisa nem outra. Há, apenas, indecisão e indefinição. Primeiro, há dias, um grupo de dirigentes decidiu avançar com um pedido de retirada da confiança política a Joacine Katar Moreira no Congresso deste fim de semana. Depois, Ricardo Sá Fernandes, do Conselho de Jurisdição do partido, criticou violentamente esta “decisão politicamente errada e injusta”. E neste sábado, numa demonstração de paralisia e medo, o Congresso optou por adiar essa discussão. Mas não ficou tudo na mesma — ficou tudo pior. Entre o avanço e o recuo, o país assistiu, durante longas horas, a gritos, a acusações de “mentira” e a prenúncios de “suicídio” político.
Joacine Katar Moreira tem muita culpa neste absoluto falhanço que é a entrada do Livre no Parlamento. Mas não teve nenhuma culpa no triste espectáculo deste sábado. O culpado é Rui Tavares — porque construiu um partido que se gaba de não ter um presidente ou um líder e porque não assume as suas responsabilidades como figura principal do Livre.
Rui Tavares gosta de dizer que não é o fundador do Livre — é apenas um dos fundadores do Livre. E gosta de dizer que não manda no Livre, porque o partido funciona de forma “horizontal”. Mas, nos momentos decisivos, surge sempre como uma espécie de líder fantasma. Quando se deu a primeira clivagem com Joacine Katar Moreira, Rui Tavares apareceu aos jornalistas a avisar, ominoso, que o partido precisava de “voltar ao trilho”. E este sábado apareceu novamente aos jornalistas a explicar a razão para o adiamento da retirada da confiança política à deputada. Mas não serve de nada ao Livre que Rui Tavares se limite a falar à frente das câmaras de televisão quando lhe parece útil ou inevitável. Aquilo que falta ao partido é a capacidade de decidir, e a capacidade de manter, um rumo político. E, para isso, é preciso ter um líder que exerça o poder, essa terrível palavra que deixa os militantes do Livre a tremer.
Neste momento, cumprindo a vontade de Rui Tavares, não há ninguém que mande no Livre. Mas, como se comprovou mais uma vez este sábado, quando ninguém manda sobram os berros.