Nestes últimos dez anos, tenho evitado escrever sobre o tema, nem sequer uma palavra, à espera que tudo passasse.
Mas todos os anos há novas notícias e mais comentários e opiniões. Não, o assunto não está a desaparecer. Tenho, por isso, passado sempre uns dias por ano com o sangue a ferver, sem querer dizer nada.
Estou a falar do desaparecimento de Maddie McCann.
Não faço ideia do que aconteceu. Não tenho nem opinião nem teses. Ninguém, além dos autores do crime, sabe o que realmente sucedeu. O que sei é que muitas coisas nesta história foram mal interpretadas, e nos últimos dez anos temos tido, em Portugal e em Inglaterra, uma espécie de “tribunal dos media” a passar julgamentos precipitados sobre o outro país.
Muitas das acusações dirigidas em Portugal contra os McCann, e em Inglaterra contra a polícia portuguesa estão baseadas na incompreensão de certas diferenças culturais. Foi esse desentendimento que distraiu toda a gente neste caso.
Um exemplo: quando os McCann deixaram os seus filhos num apartamento trancado, para eles isso não foi negligência. É uma coisa que muitos britânicos faziam na altura e talvez ainda façam hoje. Não, não estou a dizer que era correcto, mas na sua (minha) cultura, isso era um comportamento normal.
O facto de os McCann deitarem os filhos às 19h30 foi entendido em Portugal como crueldade, e foram até acusados de dar drogas aos filhos, com o objectivo de os adormecerem mais cedo. Mas meter crianças pequenas na cama às 19h30 no Reino Unido é inteiramente normal. Na verdade, quase toda a gente o faz.
Quando Kate McCann escreveu no seu diário, num outro dia, antes do dia terrível, que “os gémeos hoje estavam histéricos”, isso foi interpretado pela imprensa portuguesa como se Kate fosse uma mãe que tivesse perdido o controle da família. Acontece que perceberam mal o significado de “hysterical”. “Hysterical” não significa aqui “histérico”, mas “muito engraçado”, que é o sentido mais comum de “hysterical” em inglês. As duas línguas estão cheias de palavras que são iguais e significam coisas muito diferentes: “vulgar”, por exemplo, significa ordinário ou grosseiro em inglês e normal ou costumeiro em português.
Outro caso: quando Kate McCann ficou, segundo parece, calada e sem reacção perante a polícia portuguesa, a imprensa de cá considerou isso como sinal de frieza, maldade ou culpa. Mas esse tipo de atitude é precisamente o que no Reino Unido nos é recomendado em caso de sermos interpelados pela polícia, especialmente se não cometemos nenhum crime: não diga nada. No entanto, ainda hoje, quando o caso é falado, há gente a dizer, em relação aos pais, que “nem posso olhar para essas caras, o que eles fizeram”, “vê a cara dela, tem cara de má, é óbvio que é culpada”, “ela é tão fria, foi ela!!”, “os britânicos são tão frios…”. Tudo disparates.
Mas Portugal também não se safou muito bem no Reino Unido. A imprensa britânica disse muitas vezes que a polícia portuguesa agiu de uma maneira totalmente incompetente e estúpida, sem qualquer profissionalismo, deixando contaminar o local do crime. A própria polícia britânica tratou os seus colegas portugueses como umas anedotas. Ao chegar a Lagos, os polícias britânicos, dizem, comportavam-se como os representantes de uma potência colonial. Mas quando está em causa a busca urgente de uma criança de três anos, quantos locais de crime, em qualquer lado do mundo, não acabam contaminados? Aposto que muitos, e aposto que também acontece em Inglaterra, independentemente do modo como as polícias funcionam normalmente.
A acusação pior atirada contra os portugueses foi a de que há em Portugal uma grande tolerância para com a pedofilia. Presumo que isso se deva ao facto de o caso Casa Pia ter estado tanto tempo nas manchetes na mesma época em que Maddie desapareceu. É uma acusação que, felizmente, parece ter desaparecido… talvez porque o caso Yew Tree, uma investigação gigante sobre pedofilia na sociedade britânica, esteja a ultrapassar todas as expectativas, e seja muito pior do que o caso Casa Pia.
A única coisa que realmente estou aqui a tentar dizer é que a xenofobia e a ignorância cultural têm, de ambos os lados, contaminado demasiado aspetos deste caso horrível. Intriga-me que tal suceda com duas nações que supostamente são os aliados mais antigos um do outro. E enquanto continuam todos à briga, a culpar os “estrangeiros”, a Maddie mantém-se a única vítima verdadeira nisto tudo.
(Traduzido do original inglês pela autora)
Bloody foreigners
I have spent ten years studiously avoiding writing about this, hoping it would go away.
Every year, I see the news and people’s reactions, and no, it doesn’t go away. I spend a few days of each year with my blood boiling, saying nothing.
I have no idea what actually happened, nor do I have any theories or opinions about what happened. No one apart from the perpetrators has any idea what actually happened. All I know is that many things were misread and the last ten years have been an ugly trial of two nations, in a trial by media.
So many of the accusations levelled at the McCanns and at Portugal and the Portuguese police were just down misunderstandings of cultural differences, distracting everyone.
When the McCanns left their children in the locked apartment it, to them wasn’t negligence. It was a thing that many British people did back then, and possibly still do. No, I am not saying it was the right thing to do. It was a thing which, in their (our) culture, was acceptable behaviour.
When they put their children to bed at 7.30, it was taken as cruelty in Portugal, and they were accused of drugging their children. Putting small children to bed at that time is a thing that most British people do.
When Kate McCann wrote in her diary that one day “the twins were hysterical today” it was taken in the Portuguese press as evidence that she was an overwrought mother, who couldn’t cope with her children. “Hysterical” means “extremely funny” in English, it is not limited to mean “hysterical” in its original sense. It is as big a difference as between Portuguese “vulgar” (ordinary) and “ordinário” (vulgar).
When Kate McCann reacted by shutting down when interacting with the Police, it was taken as guilt and coldness. that is what we are taught to do in Britain if ever arrested for something, especially if we didn’t do it. Say nothing.
Yet, today, whenever the case is mentioned, I see the same angry accusations of the parents, that “I can’t even bear to look at them”, “look at her face, she has an evil face, it’s obvious that she did it”. “She is so cold, it was her!!”, “The British are so cold”. These things said many, many times not just on the net, but out loud.
Portugal didn’t come out of it much better in Britain, either. It was often written that the police were unprofessional bungling idiots. They were accused of incompetence and stupidity in allowing the crime scene be trampled and were not taken remotely seriously by the British press. When the British police arrived in Lagos, they were reported to have arrived like a colonial power. Who knows how many crime scenes are wrecked by any police investigations anywhere, frantically looking for a three year old child? The Portuguese police have their procedures, British have theirs.
The worst accusation aimed at Portugal was that there is an unacceptably high tolerance for paedophilia here, which was probably assumed from a scanning of the press at the time, when Casa Pia was so often in the news. It is an accusation which, happily, seems to have gone away now that Yew Tree has proven so devastating.
My only point in all this is that xenophobia and ignorance of each other’s cultures coloured so many parts of the case which, for two nations who are each other’s oldest allies, mystifies me, and while everyone continues to fight, blaming each other, hating each other, Maddie remains the only true victim of some unknown and terrible truth.