Nos debates sobre teoria democrática, existe uma definição minimalista de que gosto especialmente. Em 1982, William Riker escreveu que as eleições têm apenas uma função: escolher e remover agentes políticos do poder. Esta definição é elegante na medida em que faz das eleições apenas e só as regras do jogo, que devem ser respeitadas por todos, independentemente do conjunto de políticas públicas que cada eleitor prefira. Nas democracias maduras, os eleitores tendem a fazer uma avaliação retrospectiva do desempenho dos partidos no poder e, em face do que se passou, ajustar a sua votação. A punição dos incumbentes é o único mecanismo para sinalizar que um comportamento semelhante será penoso para os partidos que, assim, devem, avisadamente, ajustar-se. Antes de chegar ao papel das eleições em tudo isto, importa elencar um conjunto de pontos sobre o governo de António Luís Santos da Costa (escrevo o nome completo para que não haja quaisquer dúvidas sobre quem me refiro, não vá o Dr. Magalhães e Silva reparar) e a sua queda.
O país foi a semana passada surpreendido com o pedido de demissão de António Costa na sequência de uma operação policial e jurídica. De imediato, Costa e PS começaram, mais uma vez, a agitar a tese da cabala ou, em formas mais extremas, do golpe de estado. De acordo com as instruções enviadas do Rato para militantes, simpatizantes e avençados vários nas redes sociais, televisões e nos jornais, o poder judicial quereria decapitar António Costa e o seu governo. No caso de Sócrates, como brilhantemente explicou Luís Paixão Martins, o processo decorreu das reformas que o então primeiro-ministro tentou fazer. O Ministério Público vingou-se realizando a operação Marquês. No caso de António Costa, cujo governo foi, e é, um nítido nulo com nada para mostrar ao fim de oito anos, não é perceptível, pelo menos para já, de que se estará o Ministério Público a vingar. Ao longo destes anos, o governo não tocou em nada relacionado com os poderes fáticos instalados na sociedade portuguesas. Pelo contrário, deixo-os florescer e ganhar força.
Costa foi rápido a apresentar a sua demissão e Marcelo foi ainda mais rápido a chamar os partidos e Conselho de Estado, anunciando a convocação de eleições para 10 de Março, uma data longínqua que não se percebe exactamente a quem serve a não ser para quem pretender alimentar o pântano em que a sociedade Portuguesa caiu. Marcelo adora o pântano e a sua incerteza, o que lhe dá a oportunidade de tornar-se o pivot central do jogo político. No entanto, a situação é complexa e requer muitas cautelas. Em vésperas de celebração dos 50 anos da democratização, estamos naquela que é, em minha opinião, a pior crise de regime de sempre. Meço bem as palavras. Nem nos tempos de José Sócrates chegámos aqui. Neste momento, graças à nefasta coligação informal entre Marcelo e a elite do PS, que há anos rege Portugal, nada está a salvo, inclusive a justiça e até o próprio banco central, que Costa conseguiu arrastar para o atoleiro em que afundou irremediavelmente o país.
O momento actual tem de ser, naturalmente, avaliado no plano jurídico e político. No plano jurídico, sabemos ainda muito pouco. Precisamos deixar que o processo se desenrole. É absolutamente imprescindível que se torne claro para todos os Portugueses o que está em causa não só para António Costa mas, igualmente importante, para a sua elite política e administrativa. Confesso que, diferentemente de Sócrates, não acredito que Costa esteja pessoalmente envolvido em negócios escuros. Todavia, não tenho o mesmo julgamento sobre a elite política, económica e financeira que o rodeia. De qualquer modo, cabe ao Ministério Público fazer prova disso, idealmente sem interferências do poder político, que, por exemplo, no caso Sócrates tem sido muito eficaz a ajudar o arguido com acções dilatórias na secretaria. Os últimos indícios sobre a competência do Ministério Público não parecem ser famosos. A explicação alternativa à incompetência do Ministério Público é ainda mais sinistra: existe interferência política num processo judicial.
No plano político, que é o mais importante neste momento, a avaliação de Costa tem de ser absolutamente implacável. António Costa fez escolhas. As piores escolhas possíveis. E não pode dizer que não sabia. Socorro-me aqui de um artigo que, em boa hora, João Miguel Tavares escreveu no Público em Agosto de 2020, quando Costa nomeou para chefe de gabinete, o verdadeiro braço-direito de qualquer ministro, Vítor Escária. Lembra-nos João Miguel Tavares que Escária “é citado 83 vezes na acusação da Operação Marquês. Foi ele o principal intermediário no negócio das casas do grupo Lena na Venezuela”. Mais, “Escária formou uma empresa de consultadoria com três assessores de Sócrates: o ex-espião José Almeida Ribeiro, Óscar Gaspar e Luís Bernardo”. Termina dizendo que “Vítor Escária é uma lobista, um facilitador e angariador de negócios”. Se um comentador político escreveu isto na lassidão de uma tarde estival, como é que António Costa ficou surpreendido que tivessem sido encontrados mais de 75 mil euros em notas no gabinete do seu chefe de gabinete? Como é que não sabia aquilo que toda a gente nos mentideros e no bas-fond Lisboeta sabia?
A resposta à pergunta anterior é óbvia. O Partido Socialista não aprendeu nada com o caso Sócrates. E não aprendeu, porque não foi obrigado a aprender. Não teve qualquer choque exógeno que o obrigasse a mudar. De forma absolutamente cínica e estratégica, Costa manteve as práticas políticas e, no fundamental, a mesma elite política que rodeou José Sócrates. Muitos assessores de então, são agora secretários de estado. Muitos secretários de estado são agora ministros. Augusto Santos Silva, então homem forte político de Sócrates, é agora Presidente da Assembleia da República e segunda figura do estado. O mesmo Augusto Santos Silva que, em Fevereiro de 2009, sobre as suspeitas que já então recaíam sobre a vida dupla de Sócrates afirmava que estava em curso “uma tentativa de assassinato político e moral de José Sócrates”. João Galamba, o homem apanhado em escutas, em 2014, a avisar Sócrates que ia ser preso, foi ministro até esta semana.
Chegados aqui, regresso ao papel das eleições enquanto único elemento capaz de punir políticos. Porque é que o PS e António Costa conseguiram fazer isto? Numa democracia saudável e forte, as instituições e o eleitorado seriam suficientemente fortes para punir os actores políticos que agem com pouca ética e, em muitos casos, infringem as leis da República. Uma derrota eleitoral forte e contundente tem a capacidade de indicar claramente aos partidos que a sua acção não é desejada pelos eleitores e que, se não mudarem, correm um risco de sobrevivência. Isto nunca aconteceu ao PS. Os portugueses nunca enviaram um sinal inequívoco de que o comportamento da elite socialista não é tolerado, nem tolerável, pela população. Senão vejamos, em Junho de 2011, depois da bancarrota, de ter chamado a troika, de terem passado imagens na televisão em que Charles Smith afirmava de forma inequívoca que pagara dinheiro vivo ao então ministro do ambiente em troca de favores, José Sócrates teve 28% nas legislativas (cerca de 1.5 milhões de votos, apenas menos 200.000 do que Costa teria em 2015). Perante isto, o PS não tem quaisquer incentivos a mudar. Mais, arrisco afirmar que continuará sem incentivos porque os portugueses serão incapazes de punir o partido do regime. De resto, o discurso e a estratégia começaram já a ser ensaiados. Uma conhecida politóloga afirmava já esta semana que a eleição será disputada num debate entre a corrupção e a extrema-direita e que o PS é o único partido capaz de criar o frentismo contra a extrema-direita. Apesar da corrupção e da falta de ética.