O Colonial Bank era um banco sediado no estado do Alabama cujos gestores entenderam seguir por uma daquelas estratégias de expansão geométrica de que as prateleiras de histórias de terror financeiras estão cheias. De uma banqueta em Montgomery, a capital do estado, chegou a 27º maior banco dos EUA e, depois, atingiu facilmente o top 10 das maiores falências bancárias do país. Nos EUA, ao contrário da Europa, o mercado da banca é levado muito a sério e o fundo de resgate deles funciona mesmo. O banco foi intervencionado em 2009 depois de se ter percebido que era parte de um esquema de venda fictícia de crédito hipotecário, que envolvia a vice-presidente do banco e uma empresa angariadora que simulavam a existência desses créditos, quase 2 mil milhões de dólares deles. O custo para o fundo de resgate lá do sítio foi de cerca de 2,5 mil milhões de euros e o banco foi vendido a um concorrente. Estes últimos números parecem trazer-nos à memória algo que se passou entre nós, o BES.

Histórias de esquemas fraudulentos com bancos já não são exatamente notícia e esta é de 2009, várias outras (centenas delas) histórias de falências de bancos acontecem nos EUA. Na Europa, a falência de um banco é impossível porque a regulação é tão estúpida que é impossível ser banco e, então, vivemos neste limbo em que gostávamos de fazer o mesmo que os americanos, sem fazermos aquilo que os americanos fazem, que é serem liberais na constituição de bancos, deixarem que existam muitos e serem rigorosos no cumprimento das regras sem haver desculpas. Na Europa faz-se o contrário, faz-se de tudo para que só existam poucos e grandes bancos que salvamos mês sim, mês não.

O que trouxe o Colonial Bank de volta às notícias foi que no fim de 2017 um tribunal federal tomou uma decisão de implicações globais. A PwC, a auditora global com presença em Portugal, foi considerada negligente na deteção da fraude que envolvia o Colonial, o que a traz à lista dos responsáveis por recolocar os 2,5 mil milhões no fundo de resgate. O tribunal alega, numa argumentação difícil de combater, que uma empresa que recebeu cerca de 1 milhão de dólares para auditar um banco, não pode dizer que não conseguiu detetar que 20% do balanço do banco não existia. A empresa defendeu-se, em julgamento, dizendo que os seus procedimentos não estão desenhados para detetar fraudes, o que ainda ajudou a juíza na condenação.

Esta decisão é um déjà vu daquilo que aconteceu na Enron, no início do século e que levou ao desaparecimento da auditora Arthur Andersen (da marca, porque os auditores continuaram por aí com outra marca), lançando novamente a discussão se as auditoras internacionais são instrumentos de credibilidade ou simples cosmética cara, debaixo da qual toda a fraude acontece. E sobre isto deveríamos refletir sobre o que aconteceu entre nós, debaixo de uma cultura de responsabilidade completamente diferente da americana porque, na verdade, aqui nunca nada acontece, independentemente da dimensão do crime.

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Isto a propósito de outra notícia recente, esta muito mais próxima de nós, que relata que o Fundo de Resolução, aquilo que poderíamos ver como uma solução de jeito para as questões da banca na Europa, mas que acabou por ser um nado morto, dá como perdidos a módica quantia de 4,9 mil milhões de euros. E, sejamos rigorosos, são 4,9 mil milhões porque só um dos bancos foi lá metido. Com os posteriores, nomeadamente o BANIF, a CGD e o Montepio, foram usados outros fundos de resolução e, sejamos honestos nesta matéria, a resolução do BES bate por KO todos os outros processos em termos de transparência. Por isso, só podemos imaginar quanto é que esses nos estão a custar, enquanto este já tem, aparentemente, uma fatura emitida.

Aquilo que me traz aqui não é a fatura em si. Se já me leram sobre bancos, sabem que a minha opinião é que é muito pouco inteligente partir do princípio que um banco tem que ser um negócio protegido, que não pode falir em circunstância nenhuma e que a sua gestão tem que ser feita por virgens cujas mãos tenham sido beijadas por Deus. A atitude mais inteligente (para mim, a única) é assumir que um banco é uma empresa como outra qualquer, sujeita aos termos que se apliquem ao mercado em que atua na proteção dos seus clientes, mas que pode falir, que está sujeita a incompetências e às falibilidades do ser humano. E, dentro do princípio de que os clientes devem ser protegidos, a consequência óbvia é que terão que existir muitos bancos e que os bancos centrais (a bolsa do mercado do dinheiro) devem ser privados e detidos pelos próprios membros do mercado que determinarão as regras que se aplicam aos seus membros, cumprindo com esse desígnio inquestionável: o dinheiro dos clientes não se perde nunca, nem que tenham que ser os outros bancos a suportar o que faliu.

Ora, isto significa que existe uma probabilidade não nula de a falência pode ser tão grande, tão grande, que o dinheiro de todos os bancos do sistema não chega para a cobrir. Nesse caso, o dinheiro vai ter que aparecer, ou da emissão de dinheiro novo, ou dos impostos do contribuinte, o que vai dar ao mesmo em termos de destinatário da fatura. Mas como há os depositantes para proteger, ou seja, os cidadãos, o estado ou o banco central devem assumir esse custo temporariamente e é a cultura de responsabilidade em torno do sistema financeiro que determina quem a vai pagar no fim, porque há responsáveis a quem pedir contas.

Agora um à parte, por favor, não repitam aquela ladainha do contribuinte a salvar bancos porque 99% das vezes o que se passa é o contrário, são os bancos a emprestar dinheiro aos estados para conseguirem pagar as contas. Nós, portugueses, deveríamos saber isso melhor que ninguém, porque se não fosse o BCE a enterrar um esparrame imoral de euros na república portuguesa, hoje falava-se dela como uma espécie de Atlântida, uma terra perdida num dilúvio de dívidas e ignorância. Não há problema no facto de haver uma intervenção do contribuinte na salvação dos depositantes (que no fundo até são eles próprios), onde há problema é que isso seja atribuído a causas naturais, sem outra explicação.

Neste caso do Colonial atribui-se responsabilidades à PwC que, em princípio, vai ser chamada a pagar o buraco no fundo de resolução americano. Podia não ser, podia ser simplesmente o resultado de uma inversão do mercado, de algo catastrófico e inesperado. Mas a juíza concluiu que não. A cultura de responsabilidade que rodeia o sistema financeiro americano não permite que sejam dados como perdidos montantes desta dimensão sem uma razão clara e não havia uma justificação para que 20% dos ativos de um banco fossem fictícios, sem que quem tem a responsabilidade de certificar as contas não desse por isso (isto na visão da juíza, bem entendido).

No caso do BES devemos recordar que havia uma auditora responsável por certificar trimestralmente as contas, quer ao Banco de Portugal, quer aos acionistas, porque o BES era uma empresa cotada. O Banco de Portugal, por si, fazia auditorias periódicas ao banco e requeria reportes, inimagináveis para o cidadão comum, sobre o banco. No pico da crise, esses reportes chegavam a ser quinzenais. Quando a troika salvou o estado português da falência, impôs que o Banco de Portugal fizesse uma auditoria extraordinária aos principais bancos portugueses, incluindo o BES, a CGD, o BANIF e o Montepio, ao nível dos fundos próprios dos bancos, e o Banco de Portugal foi buscar duas auditoras com pouca presença na altura no sistema financeiro nacional, a PwC e a Ernst & Young, para as fazerem.

Espanta-me, por isso, que neste cenário, a nossa cultura de responsabilidade nos diga que a melhor solução é dar como perdidos 4,9 mil milhões. Reparem que não estou, de forma nenhuma, a dizer que o problema do BES era um problema detetável nas auditorias ou que as auditoras são culpadas. Podem muito bem ser completamente inocentes e por isso merecem ser libertadas de todas as suspeições. Mas faz-me muita confusão que tantos problemas ocorram, em tantos bancos do sistema – quase todos – sem que haja uma inquirição formal e pública sobre o papel e responsabilidades de quem certifica as contas e de quem tem por responsabilidade garantir que o cliente não é prejudicado. E essa inquirição não é para ser feita por deputados que leram umas coisas no site do Banco de Portugal, é para ser feita por especialistas, estrangeiros sem ligações europeias, se possível. Não é que eu não queira pagar a fatura, mas gostava de saber que sou culpado antes de a pagar. Isto porque sei que faturas destas são inevitáveis, o que não é inevitável é mandá-las sempre para o mesmo endereço.

Por isso, a cultura de responsabilidade em torno de um sistema financeiro não é coisa menor. Se as crianças não são responsáveis, o melhor é não lhes dar dinheiro para as mãos. Na minha opinião, não se poderá deixar passar esta fatura sem que se mostre que foram apuradas as responsabilidades de todos os envolvidos na questão e que tinham responsabilidades sobre a veracidade das contas. Não são só os administradores do BES, são os auditores nomeados pelos acionistas, os auditores nomeados pelo Banco de Portugal e o próprio Banco de Portugal. “Responsabilidades” significa isso mesmo e não se pode dizer que foram (e são) mal pagos para as assumirem. O Banco de Portugal e os auditores por eles nomeados na altura da troika enviaram aos bancos uma conta de vários milhões de euros por, olhando para o que hoje se pode ver pelos resultados, um monte de coisa nenhuma. E, repare-se, estamos só a falar do caso que é transparente, não estamos a falar dos demais casos que foram passados por debaixo do pano e cujos fundos de resolução foram outros, embora as faturas já tenham o meu endereço lá escrito. A inevitabilidade da fatura cair nas minhas mãos significa a inimputabilidade dos ditos “responsáveis” e resta-nos aplicar a regra que me ensinaram de muito novo: “Não se mandam putos às compras”. Se é este o cenário, então estas pessoas não podem andar a mexer no nosso dinheiro.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer