A ideia de direitos humanos tem um longo historial. Vem lá de longe, da conceção cristã de direito natural, que dizia que os Homens, como criaturas de Deus, vinham investidas de um conjunto de direitos. A evolução da história ocidental deixou cair o Cristianismo a partir da Revolução Francesa, substituindo-a pela cidadania, também ela com inerências. Nos Estados Unidos os direitos naturais casaram com facilidade com os cívicos, criando uma harmonia – que, é certo, não era para todos – muito própria naquela parte do mundo. Percebe-se, portanto, porque é que a universalização e exportação de tal conceito terá nascido por ali.

No entanto, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, o conceito de universalidade dos direitos humanos só se generaliza no final dos anos 1940 e, em parte, por razões práticas e instrumentais. Woodrow Wilson, o presidente a quem muitas vezes é apontada a autoria desta transformação internacional, na verdade, pouco ou nada teve a ver com ela. A sua maior preocupação era fazer a ligação entre o nacionalismo e o internacionalismo, sem que um se sobrepusesse, de forma considerável, ao outro. Acabou por ligar o nacionalismo liberal ao cosmopolitismo kantiano. Ou seja, os estados liberais estavam em muito melhores condições de formarem organizações internacionais e cooperarem entre si e com outros nesse contexto. O “direito humano” wilsoniano era a autodeterminação. Os povos tinham o direito de escolher como ser governados (e escolheriam certamente a democracias) e quem os protegeria os seus direitos seriam os governos liberais. Wilson pode ter revolucionado a política internacional, mas não se atreveu a incomodar o conceito (e o direito) de soberania.

Já Franklin Delano Roosevelt deu um passinho em frente. É difícil perceber se por convicção ou por necessidade, ainda que me incline mais para a segunda. Se queria que a ordem pós-II Guerra Mundial resultasse tinha de corrigir Wilson e convencer os americanos (elites políticas e opinião pública) a deixar de uma vez por todas o isolacionismo da Europa. No primeiro caso, as alterações são inúmeras, mas talvez uma das mais importantes seja também a mais discreta. Tendo um certo tipo de nacionalismo destruído a Europa e o mundo como o conhecíamos, era preciso “retirá-lo” da narrativa política. É nesse momento que os direitos humanos substituem a autodeterminação na narrativa americana. E é aí que se abre uma caixa de pandora cujo poder só perceberíamos décadas mais tarde. No segundo caso, para convencer as opiniões públicas das virtudes das Nações Unidas, começou por anunciar a ativação das agências especiais que serviam justamente para apaziguar, em diversas frentes, o sofrimento humano. Só depois veio o Conselho de Segurança, a única instância que tem verdadeiro poder quando chegamos às questões da paz e da guerra. Ainda assim, os direitos humanos universais, consagrados em Carta em 1948 e tudo, acabaram por ficar relativamente esquecidos na gaveta, assim que começou a Guerra-Fria. A soberania, mal ou bem, sobreviveu e sobrepôs-se à vontade de defender os direitos de biliões de pessoas.

A vitória dos direitos humanos veio com o colapso da União Soviética. Sem rival aparente, os Estados Unidos passaram a usar as organizações internacionais e a força militar para repor os direitos perdidos por determinadas populações. A comunidade internacional – a Europa também embarcou nesta viagem – assumiu a utopia impossível de concretizar de depor ditadores, transformar estados não democráticos em democracias funcionais em tempo record, de acorrer, pela força se necessário, a povos oprimidos, a refugiados e migrantes, a desvalidos de catástrofes naturais. Reconstruíram estados (muitos deles falharam) pelo seu próprio playbook, porque, pela primeira vez, desde que o mundo tinha sido inventado, o indivíduo era a figura mais investida no direito internacional. Durante cerca de vinte anos, a soberania esteve condicionada ao bom comportamento dos líderes de cada país. Não quer dizer que em alguns casos não tenha havido resultados positivos. Mas não foram muitos. E como qualquer utopia, esta não poderia sobreviver a uma mudança na estrutura do poder. Porque é impossível chegar a todos os indivíduos ao mesmo tempo. E porque há estados, agora mais poderosos que, simplesmente. não aceitam uma mudança tão drástica das regras do jogo.

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Num discurso em 2013, no Clube Valdai, Vladimir Putin criticou duramente aquilo a que chamou “ultraliberalismo ocidental”. Curiosamente, nesse mesmo momento, os Estados Unidos estavam a inverter a sua trajetória no que respeita aos direitos humanos. A intervenção na Líbia, já na retaguarda (lembram-se do leading from behind?) era a última intervenção nestes termos e já muito a contragosto. Aliás, dois anos mais tarde, Barack Obama, cansado de guerra, viria a entregar a Putin o destino da Síria, com os resultados que se conhecem.

Mas o cansaço dos Estados Unidos e a sua sobre-extensão não foram as únicas vítimas das derivas liberais. Deram razões a muitos povos do mundo para se sentirem ameaçados. A gota de água, diz-nos agora a história, não foi a Guerra do Iraque, mas a intervenção da NATO na Sérvia. Conta-nos Arkady Osttovsky que as bombas em Belgrado mudaram a disposição da opinião pública russa relativamente ao Ocidente: “Foi como se os bombardeamentos da Sérvia libertassem algo que tinha estado a fermentar durante anos. Foi uma reação atrasada à crise de 1998, à guerra entre banqueiros, mas de certa forma, foi uma coisa ainda mais profunda em que incluía o colapso soviético e a perda do estatuto imperial da Rússia”. Sucederam-se manifestações sucessivas em frente da Embaixada dos Estados Unidos da América, uma vez que os russos “sentiram necessidade de deitar para fora as suas frustrações, irritações e humilhações contidas contra os seus adversários tradicionais, a América e a NATO”. Se até aí havia uma esperança diluída de que a Rússia poderia parecer-se com os Estados Unidos, ela evaporou-se, dando lugar a um antiamericanismo que abriu a Putin, nessa altura um perfeito desconhecido, a oportunidade de explorar os ressentimentos russos a seu favor.

Não faço parte do grupo de pessoas que acredita que os Estados Unidos são culpados pela Guerra na Ucrânia. A União Soviética colapsou, a Rússia perdeu a Guerra Fria, o Ocidente venceu-a, e os ressentimentos nacionalistas, por mais generosidade que houvesse, iriam sempre prevalecer. Por estas ou outras razões. Mas sou crítica dos Estados Unidos por terem criado a ilusão de que a história tinha acabado e que se poderia salvar todo e qualquer ser humano das agruras da vida nacional e internacional. Isso simplesmente não existe. Os direitos humanos são fundamentais. Mas se não forem os estados a garanti-los, nada nem ninguém os garantirá. A última machadada nesse conceito veio com a guerra na Ucrânia. Esta semana Ian Stoltenberg mostrou-o inadvertidamente ao proferir a frase: “é um direito fundamental dos estados escolherem o seu caminho”. Dos estados. A soberania voltou para onde nunca devia ter saído.