Talvez não se lembrem, “Enfermeiro” foi a palavra escolhida por aqueles que votaram em 2018 no evento Palavra do Ano promovido pela Porto Editora, tendo recebido 37,8% dos 226 mil votos totais.

Vamos ser totalmente claros e honestos, em 2024, os títulos dos jornais deixaram de utilizar a palavra “Enfermeiro” e os programas eleitorais dos partidos políticos seguem a agenda mediática em vez de colocar o foco na verdadeira reforma da Saúde em Portugal, sem enviesamentos e conservadorismos injustificáveis.

Nos últimos anos, em particular no ano de 2023, os cenários descritos nas urgências, internamento e blocos operatórios dos hospitais ignoraram a nossa existência. Nos cuidados de saúde primários, muitos ignoram o trabalho dos enfermeiros de família ou então das unidades de cuidados na comunidade (UCC) que levam ao domicílio cuidados especializados a milhares de pessoas diariamente. Até o sucesso da elevadíssima taxa de vacinação em Portugal das últimas décadas que aos enfermeiros se deve, foi externalizada, com os resultados que todos conhecem, mas que não querem estudar com profundidade. A evidência científica parece ser mais apreciada quando transforma e justifica decisões erradas e precipitadas em verdadeiras e existem cada vez mais vozes que afirmam que se alteram normas de orientação clínica de acordo com a necessidade política do momento. Este não é certamente o caminho.

Se abandonarmos a análise superficial do quotidiano, surge uma narrativa diferente, pois, mais do que a falta de enfermeiros nos diferentes contextos, o que existe é o silenciamento das suas vozes. É isso que acontece nas instituições hospitalares em Penafiel, Santarém, Lisboa, Gaia, Braga ou Évora, só para mencionar alguns dos locais que foram notícia por maus motivos. O que existe em comum em todo o território nacional é que ignoram, sistematicamente, que os enfermeiros são os olhos, os ouvidos e as mãos à beira das pessoas que estão no leito dos hospitais, do nascimento até à morte. Somos aqueles que seguram nas mãos dos que têm medo, confortam os que estão em sofrimento e as suas famílias, assim como celebramos os bons momentos do ciclo vital em que estamos presentes. Somos os advogados dos utentes, fazemos com que tarefas complexas pareçam simples e garantimos que todo o ecossistema dos cuidados de saúde funcione.

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No entanto, de forma demasiado frequente, as nossas vozes são silenciadas e não falo apenas do facto de em 15 meses de governo de maioria absoluta do PS nunca ter existido reunião entre o SNE – Sindicato Nacional dos Enfermeiros e o Primeiro-Ministro, António Costa ou com o Ministro da Saúde, Manuel Pizarro. Para aqueles que estão na prática clínica, é evidente que a gestão intermédia limita a nossa autonomia, reduzindo-nos a uma mera peça na engrenagem de uma máquina. A rigidez hierárquica cria um maior distanciamento entre os enfermeiros e os decisores, fazendo que com que o que pensamos e propomos seja, constantemente, ignorado. Relativamente às dinâmicas do poder, é cada vez mais evidente a predominância dos colarinhos brancos dos fatos sobre as fardas brancas, verdes ou azuis, silenciando e subaproveitando a capacidade instalada, os 82 120 enfermeiros registados na Ordem dos Enfermeiros, cuja competência e experiência poderia revolucionar os cuidados de saúde. Qual o resultado disto? Um sistema que não tem apenas falta de enfermeiros, enfermeiros especialistas e enfermeiros gestores, mas que é insuficiente no aproveitamento de todo o seu potencial. Os enfermeiros estão ansiosos para contribuir, inovar, liderar, mas a nossa ação está limitada e as nossas vozes reprimidas por políticas e procedimentos que priorizam o controlo em vez da colaboração.

A degradação do sistema de saúde é um sintoma, não é a doença. O verdadeiro problema é um sistema que desvaloriza as pessoas que trabalham com o coração nas mãos. Para tal, aqui está uma proposta de tratamento:

1 – Dar poder aos enfermeiros: é imprescindível aumentar a nossa autonomia, nomeadamente, dos enfermeiros especialistas e enfermeiros gestores. Confiem nas nossas decisões e libertem a nossa criatividade. Vamos surpreender com as soluções que podemos criar;
2 – Abrir os canais de comunicação: é urgente acabar com as “quintinhas” ou compartimentos estanques e criar canais de comunicação entre todos. Vamos trabalhar em conjunto, em colaboração, com o foco no cidadão, em todo o ciclo de vida, na promoção da saúde, na prevenção da doença, no tratamento e na reabilitação;
3 – Valorizar a competência e experiência: é preciso mudar mentalidades, pois os enfermeiros não são meros prestadores de cuidados de Enfermagem, mas sim peritos em cuidados de Saúde. É indispensável ouvir as nossas propostas, respeitar o nosso conhecimento e guiar pela nossa capacidade de tomar decisões.
Este texto não é sobre os enfermeiros, mas antes sobre os cidadãos que utilizam o sistema de saúde. É sobre criar um sistema de saúde que cresça e prospere, em vez de apenas lutar pela sobrevivência. É sobre libertar o potencial das pessoas que estão mais perto do coração do sistema de saúde. Por isso, antes de falar da falta de enfermeiros, é preciso começar por amplificar as suas vozes. Vamos reescrever a narrativa, um turno de cada vez. É preciso ser mais exigente com quem decide e nos dias 10 de março e 9 de junho de 2024, somos nós que decidimos. Porque quando as vozes dos enfermeiros são ouvidas, os cuidados de saúde funcionam e os cidadãos melhoram a sua qualidade de vida.