A notícia da demissão de André Ventura não apanhou de surpresa aqueles que vêm acompanhando há anos o comportamento dos líderes populistas. Na verdade, a História não regista qualquer caso em que um líder populista tenha admitido a crítica interna ou o mais leve sinal de contestação relativamente às decisões que toma.

Basta – para ainda não dizer «chega» — ver a forma como a família LePen se digladiou quando a filha Marine resolveu que era chegado o momento de tomar o lugar do pai Jean-Marie. Isto para não falar do partido unipessoal que Geert Wilders formou na Holanda em 2006. Um caso em que o nome – Partido para a Liberdade – representa uma inequívoca contradição face à impossibilidade estatutária da entrada de novos membros. Dito de outra forma: a liberdade é apenas para um membro, o líder. A regra populista. Isto para já não falar da forma como Víktor Orbán impõe a sua vontade na Hungria ou da falta de democracia interna de inúmeros partidos populistas como o Podemos de Pablo Iglésias ou o Bloco de Esquerda português.

Séculos atrás, Maquiavel ensinou ao príncipe que, antes de tomar uma decisão a solo, deveria rodear-se de conselheiros sábios a quem ouviria, mas apenas quando quisesse e sobre aquilo que desejasse. André Ventura tal como qualquer outro líder populista dispensa a lição, pois só ele tem a capacidade de decifrar o oráculo do povo. Só ele dispõe da capacidade de se assumir como a reserva moral do povo puro na luta contra a elite corrupta.

São Paulo, na epístola aos Coríntios, defendeu que o carisma era algo que Deus dava ou não atribuía. Os líderes populistas consideram-se como os destinatários privilegiados do dom. Por isso, no caso presente, Ventura não percebe que ainda haja quem ouse questionar a sua decisão. Não se trata apenas da sua abstenção no que concerne à manutenção do estado de emergência. Esse foi apenas o pretexto para desencadear um processo que julgava desnecessário. Na sua ótica não faz sentido que os militantes não percebam a sorte que têm por lhes ter sido colocado no caminho o guia ou condutor. Está bem que o Chega é um partido recente, mas, na leitura populista, já houve tempo suficiente para que os militantes e simpatizantes se tivessem apercebido do carisma do líder.

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Face a esta ingratidão, Ventura tomou a única decisão que o estatuto populista prevê. Demitiu-se e convocou uma Convenção para o próximo mês de setembro. Uma decisão destinada a clarificar a situação no partido. Os militantes vão ser chamados às urnas. À primeira vista, uma forma de dizer que dispõem do poder para elegerem o Presidente que julgam estar à altura de um partido que, como as sondagens têm vindo a mostrar, está longe de colher votos e apoios apenas na extrema-direita. Uma situação com tendência a alastrar face às dificuldades com que os portugueses se verão confrontados no curto prazo.

Porém, a questão é mais fina quando, como é o caso, está em causa um partido populista. A História mostra que um líder populista não se demite. Finge demitir-se. Sendo verdade que também há partidos não populistas cujo líder apresenta a demissão na esperança de vir a reforçar o seu poder – desiderato nem sempre alcançado –, no caso populista o resultado está pré-determinado. Os militantes não são chamados a escolher o líder. Penitenciam-se pela ousadia de o terem criticado. Imploram-lhe que não os abandone.

Um sacrifício que André Ventura, do alto da sua benevolência carismática, decide aceitar. Obviamente, em nome do interesse do povo.