A reação de André Ventura à tortura de imigrantes, em Odemira, perpetrada por sete militares da Guarda Nacional Republicana (GNR), enquadra-se naquela que é a atitude habitual de um líder populista identitário ou cultural. Em qualquer país. Em todos os continentes. Como se verá adiante.

André Ventura criticou o desvio comportamental dos militares da GNR e deixou claro que a farda nunca poderá ser usada para “abusar da autoridade, humilhar ou diminuir outros seres humanos”. Por isso, considerou inevitável que fossem exigidas responsabilidades. Tratou-se, obviamente, de uma condenação inequívoca por parte do líder do Chega.

Só que André Ventura não se ficou pela condenação. Ao mesmo tempo que mostrava o seu repúdio pelos atos de tortura, fez questão de chamar a atenção para a existência de dois critérios face à atuação das forças de segurança, consoante a condição de agentes ou de vítimas da violência.

Dito de uma forma mais clara: segundo ele, uma onda de indignação varre o país sempre que as forças de segurança usam ilegitimamente a força, mas essa onda mal chega à praia e não alimenta a discussão pública quando as forças de segurança são “atacadas e humilhadas”. Afinal, a verdade, tal como a moeda, tem duas faces e nunca pode ser encontrada através da manipulação da realidade levada a cabo por quem dispõe de uma agenda centrada apenas no próprio interesse.

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Neste ponto, convirá levantar os olhos para os Estados Unidos da América e perceber que a reação de André Ventura está longe de constituir um ato isolado. Pelo contrário, tem muito de semelhante com o que se está a passar na Terra do Tio Sam. Um país de onde nos chegam constantemente imagens de confrontos entre apoiantes dos novos movimentos sociais, nem sempre apenas de caráter étnico ou racial, e as forças responsáveis pela segurança.

Imagens que, a nível interno, começam a pôr em causa o real sentido das reivindicações dos manifestantes e a cobrar um preço político. Por exemplo, na recente eleição para Governador da Virgínia, o candidato democrata, Terry McAuliffe, viu-se derrotado pelo candidato republicano, Glenn Youngkin. Uma derrota totalmente inesperada, uma vez que, desde 2009, a Virgínia tem dado sempre a vitória ao Partido Democrata.

Ora, a vitória do candidato do Partido Republicano, onde é cada vez mais indisfarçável a marca do Trumpismo, foi conseguida muito à custa da promessa de Youngin de que, no caso de ser eleito, iria proibir o ensino da Teoria Crítica da Raça (TCR) nas escolas. Uma teoria que, desde os seus primeiros sinais, no final dos anos de 1960, e da escolha definitiva da denominação, em 1989, aposta na transformação das bases da sociedade, desafiando o status quo, a ideologia dominante, e atribuindo centralidade à raça e ao racismo.

Face ao exposto, talvez tenha chegado o momento para uma reflexão profunda sobre as causas passíveis de explicar o recrudescimento do fenómeno populista. Sobretudo na dimensão cultural ou identitária. A sucessora natural da modalidade antissistema.

Uma reflexão que, como decorre da vida habitual, dificilmente colhe junto da esquerda. A sua visão coloca a tónica na liberdade e revela um convívio difícil com a ordem.

Nos Estados Unidos, era habitual dizer que o que se passava em Las Vegas ficava em Las Vegas. Agora os tempos são outros. Odemira não é apenas uma vila do meu Alentejo. É um motivo de dupla inquietação.