A democracia na América, ao contrário do estereótipo, sempre foi muito mais frágil do que muitos pensam. Se alguns insistem em utilizar a frase “a mais velha democracia do mundo”, estão certamente a aplicar uma bitola diferente da correcta e reconhecida pelos especialistas na matéria. As “democracias” que surgiram no século XVIII e XIX eram só mesmo democracia com muitas aspas: a inclusão e expansão do eleitorado a todos os cidadãos, sem restrições de rendimento, sexo, religião ou raça, não é um mero pormenor, é uma condição sine qua non para a existência de uma democracia. Nas palavras de Robert Dahl, uma democracia define-se pela competição política entre projectos diferentes, mas também pela inclusão e participação de todos os cidadãos. Contestação entre apenas uma parte ou uma elite não é uma democracia. Afinal de contas, é relativamente fácil aceitarmos a contestação dentro de limites muito restritos, ou entre pessoas iguais a nós. O difícil é aceitarmos a competição política entre um grupo muito diverso e com pessoas com quem discordamos.
Ao contrário da maioria das democracias actuais, os EUA não refizeram uma nova constituição no início do século passado ou no pós-guerra, os dois grandes momentos da expansão da democracia e de inclusão das massas. Ao contrário do Reino Unido, que também não fez uma nova constituição nesses momentos críticos, os EUA são um país de dimensão continental, muito mais diverso e muito menos centralizado. Adaptar a maquinaria institucional pré-existente para uma sociedade destas é infinitamente mais difícil. E, se fazer novas constituições ou reformas constitucionais em excesso não é bom (vide Itália), também é verdade que fazer reformas a menos também causa muitos problemas. As instituições deixam de conseguir processar as questões que a sociedade lhes coloca. Como resposta, inventam-se soluções ad hoc aqui e ali, até ficarmos com uma manta de retalhos que em conjunto tem demasiadas incoerências. No caso americano, os tribunais politizaram-se excessivamente e os problemas resolvem-se muitas vezes ao nível das administrações estaduais, ao sabor do vento político momentâneo.
Hoje, uma das questões mais difíceis que os EUA enfrentam é, sem dúvida, a questão da administração eleitoral e do sistema eleitoral lato sensu. Não há uma administração eleitoral com regras uniformes para todo o país nem uma máquina eficiente e bem oleada. A manta de retalhos da administração eleitoral ao nível estadual significa uma miríade de regras diferentes que não só variam ao sabor de ventos políticos momentâneos, como são extremamente ineficientes na simples tarefa de contar votos, uma tarefa elementar num Estado contemporâneo. O problema principal nesta manta de retalhos é a criação de inúmeros momentos no processo democrático em que é possível interferir com a contagem dos votos ou desvirtuar a tradução da vontade dos cidadãos em representação política. O caso do estado da Flórida em 2000 é ilustrativo: as campanhas, por razões meramente políticas, utilizaram o sistema judicial para tentar estabelecer regras ad hoc de contagem e recontagem de votos. Note-se que, para decidir, as decisões sobre regras e administração eleitoral foram feitas por políticos estaduais de um dos lados da contenda e por um Supremo Tribunal altamente politizado. Com este cenário, a deslegitimação do processo eleitoral rapidamente se segue, bem como a politização excessiva dos árbitros e das regras do jogo.
Perante tudo isto, os defeitos de uma instituição como o Colégio Eleitoral agravam-se. O Colégio Eleitoral não existe para dar voz aos estados pequenos. O Senado dá voz aos estados pequenos, ao dar dois senadores a todos os estados independentemente da sua população. Mas o Colégio Eleitoral não é o Senado. O Colégio Eleitoral é a soma do número de senadores (cuja distribuição beneficia os estados pequenos) com o número de representantes na Câmara de Representantes (cuja distribuição é proporcional) e que votam de uma forma winner-take-all por estado. Ora, isto significa que o Colégio Eleitoral não beneficia os estados pequenos, nem é proporcional ao número de votos dos cidadãos: o Colégio Eleitoral simplesmente beneficia de forma arbitrária estados grandes que estejam divididos 50-50. Note-se que os swing states mais relevantes, onde todos gastam mais dinheiro, são os swing states maiores, como a Pensilvânia (o quinto maior estado da nação) e não os mais pequenos, como o Nevada. Porquê? Porque num sistema winner-takes-all ter os 19 votos da Pensilvânia é muito mais valioso que ter os 6 votos do Nevada, apesar de ambos estarem igualmente divididos. Da mesma forma, se o Texas, a Califórnia ou Nova Iorque estivessem divididos 50-50, seria aí que as campanhas se concentrariam.
Num sistema federal, o Senado e as competências políticas estaduais protegem autonomia política e dão voz política às várias regiões. Ao contrário do que é frequentemente dito, os autores da constituição não desenharam o Colégio Eleitoral a partir de princípios teóricos e este nem sequer foi a primeira opção de James Madison, cujo desejo era um sistema de representação proporcional em que a legislatura elegia o executivo (como nos regimes parlamentares). Alexander Hamilton também tinha outros planos para o Colégio Eleitoral (uma elite aristocrata e independente do voto popular). O Colégio Eleitoral foi, simplesmente, o compromisso possível entre estados com desejos e ideias muito diferentes e entre os quais estavam estados esclavagistas eu queriam proteger esse status quo. Assim, o Colégio Eleitoral é simplesmente um resquício de uma era em que as “democracias” não eram totalmente democráticas, em que não se incluía a voz de todos os cidadãos da forma que hoje reconhecemos ser essencial. O Colégio Eleitoral servia para uma eleição indirecta, num sistema onde os votos dos cidadãos não tinham o mesmo valor e podiam ser revogados muito mais facilmente. O Colégio Eleitoral é, também, um resquício de um tempo em que essa eleição indirecta se fazia através das legislaturas estaduais, porque de facto foi um tempo anterior à nacionalização da política, que também ocorreu em todas as democracias europeias ao longo do século XIX e XX. A nacionalização e democratização política tornam o Colégio Eleitoral profundamente obsoleto, para além da sua natureza anti-democrática. Para além de retirar voz a milhões de cidadãos, abre-se a porta a revogar a própria vontade dos cidadãos em inúmeros pontos do processo, como a ratificação dos resultados pelos políticos estaduais ou a ratificação da eleição pelo vice-presidente em funções.
Em 2020, Mike Pence recusou revogar o processo democrático. Recusou reconhecer eleitores “alternativos” do Colégio Eleitoral que não haviam sido escolhidos pelos cidadãos, mas sim por elites governativas em funções que perderam as eleições mas se queriam perpetuar no poder. Sem qualquer evidência de fraude eleitoral, Trump e muitos dos seus compagnons de route decidiram propagar um discurso perigoso de deslegitimação eleitoral. Como Pence decidiu não o fazer, Trump livrou-se dele e escolheu JD Vance, que indiciou que teria desrespeitado a eleição. Naturalmente, Trump sabe que perdeu as eleições, como todos os republicanos que decidiram alinhar nesse discurso, incluindo JD Vance. Estes últimos simplesmente puseram a sua carreira política à frente da própria sobrevivência do regime de democracia representativa. Eu percebo o que leva uma pessoa ambiciosa a fazê-lo. Mas também percebo que são essas pessoas que matam as instituições democráticas: aquelas que não têm problema em pisar as regras do jogo democrático sempre que tal é necessário para avançar a sua carreira. No final das contas, serão os eleitores que nos dirão quanto valorizam realmente as instituições democráticas e quais os ataques que toleram. Nenhum dos resultados, a médio prazo, é previsível.
Podemos concordar ou discordar com políticas económicas ou de imigração, com os valores e ideias dos candidatos. Nos meios académicos em que me movo, como podem imaginar, utiliza-se excessivamente o rótulo de anti-democrático para todos os políticos cujas ideias achamos negativas ou mesmo deploráveis. Nessa matéria, alinho com a politóloga Sheri Berman que claramente afirma que devemos distinguir de forma rigorosa os políticos de que não gostamos dos políticos que não são democráticos. Por exemplo, Georgia Meloni, a direita radical austríaca ou dinamarquesa, com quem discordo veemente, nunca atacaram os alicerces da democracia. Infelizmente Donald Trump, JD Vance e muitos outros no partido republicano atacaram efectivamente os alicerces da democracia norte-americanos, que já eram muito frágeis em perspectiva comparada. Tenho pena que muitos leitores e eleitores de direita não percebam a diferença. Ao não perceberem a diferença, estão a prescindir tão levemente da possibilidade de continuarmos a viver nos regimes menos opressivos da história da humanidade, que demoraram séculos a ser construídos.