Duvidai sempre de quem se define como paladino duma determinada causa, serviço ou ação política. Duvidai sempre de quem promete ser o Dom Sebastião numa tarde de nevoeiro. Pois são estes quem acaba por destruir (voluntaria ou involuntariamente) o que jura salvar.

A Saúde em Portugal está em ataque aberto, e não é pela Luz Saúde, pela CUF ou por qualquer outra empresa de saúde privada que tão facilmente gera reflexos pavlovianos de raiva nos pretensos defensores do Serviço Nacional de Saúde. Não, a Saúde está em ataque por quem se vende como sua defensora.

Desde a assunção, em 2018, da tutela da Saúde pela mais cegamente ideológica ministra dessa pasta, a qualidade da prestação de cuidados de saúde pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem vindo persistentemente a degradar-se, contrariando a narrativa de salvação do SNS e da sua inevitabilidade na arquitetura e funcionamento atual.

A reversão das parcerias público-privadas de gestão de hospitais estatais por agentes privados é o caso mais pragmático e escrutinado de todos. Hospitais que em tempos foram dos melhores do país — em quantidade e qualidade de consultas e cirurgias, melhoria de indicadores de saúde na população que serviam, melhoria de tempos de espera e de qualidade de trabalho e satisfação dos seus recursos humanos — são hoje apenas mais um hospital subfinanciado, com restrições técnicas e burocráticas limitativas da melhor prática médica e com insatisfação crónica dos seus profissionais.

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Contra toda a evidência — inclusivamente do Tribunal de Contas — que validou também a positividade financeira das PPP em Saúde, além dos seus ganhos em prestação de cuidados às populações, hordas de militantes do intervencionismo estatal cego e antipragmático, muitos dos quais até bons profissionais de saúde das ditas unidades, celebraram com regozijo o fim das parcerias. Hoje, com a degradação das condições de trabalho e dos cuidados prestados, ouve-se silêncio.

Os Cuidados de Saúde Primários são o novo alvo da destruição da prestação de cuidados de saúde de qualidade, baseado na contratualização, descentralização e independentização das unidades prestadoras dentro do SNS.

No início de abril chamava à atenção para a irracionalidade e risco de efeitos nefastos dos novos Indicadores de Atividades Específicas aplicáveis às Unidades de Saúde Familiar modelo B (SF-B), com efeitos (se aprovadas pela tutela) retroativos ao início de 2022, apesar de publicadas posteriormente. Destaco alterações em três indicadores, que relevam na minha ótica as intenções subliminares:

  • no indicador “Planeamento Familiar” – BI indicador 434 – (que entretanto a equipa de trabalho decidiu reformular depois de repúdio público da sociedade civil) as equipas podem perder o prémio de cumprimento de atividades específicas se a utente decidir realizar uma interrupção voluntária da gravidez (IVG), considerando-se que o planeamento familiar da USF foi mal realizado por essa razão. Não só é profundamente abjeto incutir a sensação de que os médicos de família devem policiar as ações dos utentes fora da USF-B, quais inspetores da vida privada, como é incompreensível que as equipas possam ser penalizadas por um ato legal, legítimo e sobre o qual a USF-B não tem qualquer autoridade;
  • no mesmo indicador (tendo esta secção sido também removida sem aviso prévio), seria avaliada negativamente a prescrição de contraceptivos hormonais à base de estrogénios a mulheres fumadoras com mais de 35 anos (contraindicação formal) mesmo que não tivessem sido prescritos na USF de inscrição. A equipa de família pagaria pela má prática de prestadores terceiros, sejam eles do SNS ou dos setores privado e social
  • no indicador Diabetes Mellitus tipo 2 passa a ser considerado como tendo um bom seguimento de consulta o utente que realize apenas 1 (uma) consulta anual, presencial ou à distância, por médico ou por enfermeiro, em detrimento das atuais 2–3 consultas médicas e de enfermagem anuais;
  • no indicador Saúde Materna (relativo às mulheres grávidas) passa a ser avaliado como indicador de acessibilidade a prescrição de anti-inflamatórios, analgésicos e antibióticos fora da unidade. Só se considera uma boa acessibilidade se a percentagem destes fármacos prescritos na USF-B em que a utente está inscrita for igual ou superior a 60% do total. Isto é, se a utente — fazendo uso da sua liberdade de escolha e livre arbítrio — decidir ir (ou se efetivamente necessitar de o fazer) regularmente a  serviço de urgência, a uma clínica/hospital privado ou até a outra USF numa situação aguda em que esteja longe da USF de inscrição, a equipa de família é penalizada.

Da análise conjunta destes exemplos (de muito mais que podiam ser dados) chego à conclusão de que existem apenas dois objetivos subliminares: transformar as Unidades de Saúde Familiar modelo B (que constituíram um ganho de saúde pública e individual) em pequenas urgências básicas sem o mínimo de condições, e limitar o pagamento de prémios salariais a médicos, enfermeiros e secretariado clínico por ações dos utentes que lhes são impossíveis de controlar — nem deveria sequer existir essa pretensão num país livre.

Agrava a situação o facto de o grupo de trabalho ser nomeado diretamente pela tutela e não ter a presença de representantes de sindicatos médicos e de enfermagem, médicos internos das especialidades, representantes do secretariado clínico, colégios da especialidade da Ordem dos Médicos e representantes da Ordem dos Enfermeiros; assim como serem publicados, alterados e removidos sem aviso prévio e aplicados (com início em maio ou junho) com retroatividade à atividade clínica de dezembro de 2021. Trata-se de mais uma etapa da consciente e voluntária proletarização, do intencional desbaratar, das carreiras dos profissionais de saúde e do seu reconhecimento.

A destruição do modelo B de USF e a não implementação do modelo C (que poderia resolver parte das necessidade de resposta a situações agudas) é apenas mais um passo na degradação das condições de trabalho, incentivos salariais e quantidade/qualidade de prestação de cuidados de saúde.

Desvirtuar a função inicial das USF-B e do modelo geral de Cuidados de Saúde Primários, transformando-os em pouco mais que um serviço de urgência subequipado e de má qualidade, substituindo a ação preventiva na doença crónica e no acompanhamento de grupos especiais para aumento da resposta a situações agudas é uma escolha.

Mas as escolhas têm custos. E os custos já são visíveis: incapacidade de fixação de médicos especialistas de Medicina Geral e Familiar, vagas de formação específica (internato) por preencher, mais de 1,3 milhões utentes sem MGF atribuído, e uma sensação generalizada de degradação de serviço.

As escolhas têm custos. Haja coragem para apresentar a fatura a quem as faz e bata-se com o punho na mesa. Pelos utentes, por todos nós e contra cruzadas ideológicas e austeritárias.