A proposta de orçamento de Estado para 2024 conta três mentiras. A primeira, que a carga fiscal vai descer; a segunda, que a dívida pública vai diminuir; a terceira, que a actual redução da dívida pública face ao PIB se deve à acção do governo. Fernando Medina pôs a tónica do discurso na descida do IRS e faz de conta que os impostos indirectos não sobem. Na mesma linha de raciocínio, diz e repete que a dívida pública diminui face ao PIB, na expectativa que ninguém olhe para o seu montante em termos absolutos.
Já muito se disse relativamente à primeira mentira, pelo que me vou reter nas outras duas.
A dívida pública era de 219 mil milhões de euros em finais de 2015 e atingiu os 280 mil milhões de euros em Agosto de 2023. O governo desvaloriza esta subida porque olha apenas para o crescimento do PIB. No entender do governo, o crescimento económico anula o aumento da dívida. Na verdade, o montante absoluto da dívida até pode subir, mas o endividamento diminui. Mas este raciocínio, que em termos lógicos está correcto, choca com duas realidades muito simples. Primeiro, o crescimento não é imparável e podem existir sobressaltos. Basta uma recessão para que as contas saiam furadas e a dívida dispare, seja face ao PIB seja em termos absolutos. Já a segunda realidade é mais grave: nem o crescimento económico nem a redução da dívida face ao PIB se devem ao governo. São fruto de circunstâncias estranhas, estrangeiras, logo não consistentes. Não se devem à boa saúde da economia, ao bom funcionamento do Estado ou à boa governação. O crescimento económico não é estrutural, mas circunstancial. Depende de acasos e de acidentes pontuais. Dito de outra forma, o país não se desenvolveu; inchou.
O crescimento económico depende em boa parte do turismo, não das políticas do governo. Mais, a dependência face ao turismo é cada vez maior, ao ponto de não existirem alternativas caso surja uma crise no sector. Ainda estamos longe, mas Portugal arrisca-se a um cenário semelhante ao do século XIX de enorme dependência a um só produto, com as consequências nefastas que são conhecidas.
Já a redução da dívida face ao PIB é fruto de taxas de juros negativas. Inicialmente, porque eram efectivamente baixas e actualmente porque estão abaixo da inflação, o que faz com na prática que se tornem negativas e beneficiem o devedor que é o Estado português. Ou seja, o que o governo exibe com satisfação e julga suficiente para confundir a oposição desaparece caso o turismo se reduza ou quando a inflação ficar abaixo das taxas de juro (que é o objectivo do BCE). Basta a concretização de um destes factores para que o orçamento de Estado caia que nem um castelo de cartas. Nessa altura as televisões perguntarão o que correu mal quando tudo parecia estar bem.
Outro facto que sobressai do orçamento de Estado é a sua pouca relevância para o país. O orçamento limita-se a aproveitar acasos e circunstâncias favoráveis. No entanto, um crescimento económico consistente (que conduza a um efectivo desenvolvimento) não depende do orçamento de Estado. Resulta da boa governação, das decisões tomadas com ponderação e algum arrojo. Depende de uma reforma do Estado que leva a efectiva redução da despesa pública. Implica mudanças na Justiça, na Saúde, na Educação e na Segurança Social. Pressupõe uma descentralização fiscal que financie o poder local de modo a que o eleitorado sinta as implicações da gestão autárquica. Passa por alterações na lei de arrendamento que incentivem os proprietários a arrendar as suas casas; por uma lei do trabalho que tenha em consideração as diferenças nos diversos mercados laborais. Ora, o governo não está a fazer nada disto. Não há reformas, tal como não existe crescimento consistente nem uma efectiva redução da dívida. O governo fica-se pela apresentação de orçamentos que, tendo por base os anteriores, descem uns impostos para aumentarem outros enquanto a despesa sobe devido à necessidade política de se agradar a maioria do eleitorado. Este orçamento é apenas fumaça. Mas ao contrário da de ’75, que foi ultrapassada porque o povo era sereno, a actual alimenta-se dessa característica tão portuguesa. Neste aspecto podemos concluir que alguma coisa o PS aprendeu com a história.