Não foi um puro acaso, na semana em que se realizou no Vaticano um simpósio sobre a «identidade sacerdotal» e um encontro com seminaristas e teólogos, na cidade do Porto, sobre «a Igreja e o futuro do mundo na pós-pandemia», alguns meios de comunicação social aproveitarem a ocasião para divulgar o livro Sexo Santo!, publicado pela Paulinas Editores. O autor, Gregory Popcak, é psicoterapeuta da família e pretende apresentar a «Teologia do Corpo do papa João Paulo II de uma forma completamente nova de pensar no sexo… à maneira de Deus». De facto, esta hermenêutica não é nova, já tinha sido amplamente abordada no IV Simpósio Internacional da Teologia do Corpo, em 2013, em Fátima, promovido pelo Pontifício Instituto João Paulo II para os estudos sobre matrimónio e família (um dos que o Papa Francisco reformou). Baseia-se numa interpretação feita à luz de uma mescla do protestantismo americano e do catolicismo (os grandes promotores da teologia do corpo são americanos). Sabendo que o Simpósio, em Roma, sobre a identidade do sacerdote, e o encontro com os seminaristas abordariam a questão do celibato, podemos interpretar esta coincidência como uma tentativa de mostrar a irracionalidade da vida consagrada e célibe, face à sexualidade humana entendida como um meio de divinização espiritual e a marca da imagem de Deus na natureza humana.

Para quem conhece bem as catequeses de João Paulo II e tem seguido de perto estas questões, desde os anos 90, percebe que uma forte corrente de pensamento patriarcal, baseada no Antigo Testamento, se encarregou de difundir uma versão que não corresponde às originais catequeses. Ou seja, os patriarcas do Antigo Testamento praticavam a poligamia e tinham descendência numerosa, que não os impedia de exercerem a autoridade e o serviço sacerdotal com a bênção divina (João Paulo II refere isto nas suas catequeses). Foi com esta hermenêutica que os primeiros capítulos do livro do Génesis foram deturpados, baseando-se no quinto ciclo de catequeses da teologia do corpo, centradas no sacramento do matrimónio. Pretende-se, com isto, passar a ideia de que a imagem de Deus na natureza humana está na união conjugal aberta à fecundidade da procriação. Logo, o caminho para uma teologia do sacerdócio, aberto ao casamento dos padres, poderia ser consolidado na Igreja latina, do Ocidente.

Mas o discurso do Papa Francisco, na abertura do simpósio sobre a identidade sacerdotal, foi noutra direção, perfeitamente alinhado com os anteriores pontífices, fundamentados no Magistério da Igreja e na Tradição apostólica. Francisco sublinha que o amor específico cristão, no qual os seres humanos são imagem de Deus, é o amor de caridade, remetendo os sacerdotes para a primeira carta de São Paulo à comunidade de Coríntio (13, 1-8), onde este último descreve – ao detalhe – a excelência do amor de caridade. É preciso, pois, compreender com clareza a relação que se dá entre a Criação e a Redenção. E isto é assim pelo motivo de o mundo novo já ter começado com a Incarnação, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Neste sentido, os cristãos não desvalorizam a matéria, nem a corporeidade humana na sua diferença sexual masculino e feminino. Pelo contrário, mostram que há uma incompatibilidade entre estados da matéria; entre aquela que se corrompe e a vida nova em Cristo, que vivem já na dimensão histórica. A matéria que os cristãos valorizam é a substância da fé infusa, o novo estado da matéria, que cada cristão recebe no Baptismo. É nesse novo estado da matéria que se dá o crescimento do organismo espiritual, que vai informar o corpo humano no estado glorioso na ressurreição. Ou seja, é na configuração com a pessoa de Jesus Cristo que se dá um renovado sentido esponsal, pela união hipostática: o casamento da natureza divina, virginal, com a natureza humana. É neste plano de realidade que o Magistério da Igreja e a Tradição apostólica situam a relação entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum dos leigos. Primeiro, o matrimónio cristão só é elevado à dignidade sacramental por participar ainda desta ligação entre um estado da matéria que tende à finitude e o novo estado da matéria, que vincula os cônjuges à nova criação. Estes, comprometem-se, sacramentalmente, à ajuda mútua para edificarem o organismo espiritual na substância da fé infusa. Segundo, os sacerdotes comprometem-se a configurarem-se a Jesus Cristo – como companheiros do Esposo (Mt 9, 15) – e conduzir a humanidade à vida íntima de Deus, através do amor de caridade e dos sacramentos. Nenhum cristão está privado do amor esponsal, mesmo vivendo o celibato. Ninguém acede a Deus Pai sem se configurar ao Esposo e viver primeiro a dimensão esponsal cristã. Tudo isto requer um percurso ascético.

Não faz, portanto, qualquer sentido afirmar que é no inebriamento do prazer sexual que o espírito humano se eleva à união com Deus. O “êxtase” sexual está apenas a um nível psíquico, das paixões sensíveis, não espiritual, a sua característica é egocêntrica. Pelo contrário, a civilização do amor constrói-se no amor de caridade, que é oblativo, que não procura o próprio interesse. No alinhamento com os seus predecessores, o Papa Francisco reiterou que a vida sacerdotal está alicerçada na dimensão do amor fraterno, no amor de amizade e no amor filial que perdurarão na vida futura, em Jesus Cristo.

Esta renovada forma de encarar as potencialidades da vida cristã é de suma importância para «pensar e gerar um mundo aberto», tal como o Papa Francisco propõe na sua Carta Encíclica Fratteli Tutti, de 2020, sobre a fraternidade e a amizade humana à escala social global. Nesta Encíclica, o Papa fala-nos do amor de caridade como a única possibilidade de a humanidade conseguir projetar-se mais além: «A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós “uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento do ser”» (88). Um pouco mais adiante, afirma: «A estatura espiritual de uma vida humana é medida pelo amor, que constitui “o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade de uma vida humana”. (…) Todos nós, crentes, devemos reconhecer isto: em primeiro lugar está o amor, o amor nunca deve ser colocado em risco, o maior perigo é não amar (cf. 1Cor 13, 1-13» (92).

É assim que a Igreja e o futuro do mundo na pós-pandemia se articulam abrindo a uma nova realidade. No início do seu pontificado o Papa Francisco apresentou quatro axiomas como pilares da sua linha de orientação, profundamente desafiadores: o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece sobre o conflito; a realidade é mais importante do que a ideia; o todo é superior à parte (EG 220-236). Neste último, refere que o modelo do Todo não é o esférico, mas o poliedro. Não é a realidade uniforme, intra-histórica, que une toda a diferença, mas sim a poliédrica. Através destes princípios, o Papa pretende «desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme» (220). Lendo com atenção estes axiomas percebemos que estão fundamentados na experiência de vida das primeiras comunidades cristãs, face ao mundo helenístico e pagão. Estas comunidades sabiam que a realidade estava mudada pela incarnação da Palavra e consolidada pela morte e ressurreição de Jesus Cristo. Viviam, portanto, com uma ampla visão escatológica, centrada no mundo da ressurreição. Eram conscientes de que só morrendo de amor, na Paixão oblativa, se dá a experiência do divino. O encontro com a dimensão divina necessita de uma ascese, é por isso que esse encontro não se dá no êxtase místico (que é ainda uma fragilidade psíquica), mas na noite passiva dos sentidos e do espírito; ou seja, no estado místico de privação-provação que conduz a uma total purificação dos sentidos corpóreos e espirituais. Só assim se alcança a visão e a relação com Deus; e n’Ele com todo o género humano.

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