Convém determo-nos um pouco mais na reflexão do controverso texto de S. Paulo dirigido aos Efésios (5, 21-32), pelos «ecos diversificados sobre o seu sentido e oportunidade, justamente lidas no contexto vivo e atual das perspetivas preocupantes da situação das mulheres no Afeganistão» (Nota CEP).

Do ponto de vista teológico, a fé cristã sempre afirmou que o Antigo Testamento deve ser lido e interpretado à luz do Novo Testamento, não o contrário. Ou seja, deve ser lido com chave cristológica. Vejamos, então, o que muda no discurso teológico, social e cultural cristão quando o enfoque é feito de modo correcto. Detemo-nos nos aspectos decisivos que demarcam o Cristianismo das religiões patriarcais e abraâmicas.

O primeiro ponto nevrálgico diz respeito a um certo alinhamento do Cristianismo com o Judaísmo e com o Islão, colocando-o ao nível das religiões patriarcais e abraâmicas, monoteístas. Isto, devido à importante questão do diálogo inter-religioso. Contudo, sendo uma religião monoteísta (professa o Deus único), o Cristianismo não é nem patriarcal, nem abraâmico: demarca-se como religião esponsal, cristológica-mariana. O próprio Jesus Cristo demarca-se desse alinhamento no enfrentamento com os fariseus: «Antes que Abraão existisse ‘Eu sou’» (Jo 8, 58). Face à questão colocada pelos fariseus sobre o «libelo de repúdio do homem à mulher por qualquer motivo», permitido por Moisés, Jesus responde taxativamente: «mas no princípio não foi assim» (Mt 19, 3-8). Remete-os para uma realidade muito anterior a Moisés.

O segundo ponto nevrálgico diz respeito à erradicação teológica e doutrinal desse princípio, ou seja, dos três primeiros capítulos do Livro do Génesis, onde está arquivada a memória de uma antropologia esponsal, de plena igualdade, entre o homem e a mulher. Justamente, para onde Jesus remeteu os fariseus, que tentavam justificar a visão depreciativa – cultural – que tinham da mulher. A leitura enviesada desse princípio fez com que a questão da mulher, no Cristianismo, começasse com Adão e Eva, já depois da transgressão, ainda no Éden. Contudo, até ao capítulo terceiro, versículo 20, a narrativa bíblica não fala de Adão e Eva mas do ser humano, homem e mulher, criados à imagem da comunhão íntima de Deus, no amor. É no capítulo terceiro, versículo 16, após a transgressão, onde aparece pela primeira vez o tema da submissão da mulher ao homem: «procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará». Só no capítulo quarto, versículo 1, o texto bíblico do Génesis se refere à união sexual e à procriação. Há, portanto, uma clara distinção antropológica anterior à transgressão (homem e mulher) e após essa transgressão das origens (Adão e Eva).

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Contudo, os três primeiros capítulos do Livro do Génesis foram remetidos para um enquadramento mítico, a-histórico, equiparados a qualquer outra narrativa religiosa mitológica. Para compreendermos bem o motivo que levou a este enquadramento mítico, devemos sublinhar um pormenor essencial do relato genesíaco que distingue a criação do homem e a criação da mulher; concretamente, o homem foi formado «do pó da terra» (Gn 2, 7) e a mulher «da costela do homem» (Gn 2, 22). Porque motivo se faz esta diferenciação da matéria prima utilizada em ambos? Do ponto de vista teológico, trata-se de compreender que o plano originário de Deus é a Incarnação; por isso, é dado um destaque diferente à criação da mulher de cuja linhagem havia de nascer Maria de Nazaré. Esta aparece associada à sabedoria, no Livro dos Provérbios, como criatura: «O Senhor criou-me como primícia das suas obras, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma. Desde a eternidade fui formada, desde as origens, antes dos primórdios da terra» (vv.22-23). Além disso, a descrição do Génesis em que a mulher é tentada antes do homem, dá-lhe um particular relevo bem como à Incarnação: «a serpente», o anjo caído, quis obstaculizar a descendência da mulher para que Deus não assumisse a natureza humana.

O terceiro ponto nevrálgico é, portanto, o da Incarnação de Deus na História da humanidade. O facto de numa jovem mulher judia, Maria de Nazaré, se ter realizado na união hipostática; ou seja, Maria dá visibilidade corpórea a Deus na substância da Fé. Nela, Deus uniu a Natureza divina à natureza humana sem a participação de homem. Nela, tem origem a renovação antropológica da humanidade que se realiza corporalmente na substância da Fé. Na plenitude dos tempos, esta jovem judia inverteu os cânones da cultura patriarcal.

As epístolas de S. Paulo aprofundam toda esta realidade sublinhando a diferença entre a antropologia do princípio, a antropologia da transgressão e a renovação antropológica pela Incarnação. Ele próprio, que tinha sido um judeu zeloso, esclarece na epístola aos Gálatas: «Com efeito, faço-vos saber, que o Evangelho por mim anunciado, não o conheci à maneira humana; pois eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por uma revelação de Jesus Cristo» (Gl 1, 11-12).

É fácil, então, constatar porque motivo os primeiros relatos genesíacos são suprimidos e a mulher é culpabilizada e vista como transgressora. Trata-se de uma construção cultural puramente humana, redutora, da qual o apóstolo S. Paulo se demarca. Na Carta à comunidade de Éfeso ele refere-se à antropologia do princípio (homem e mulher), e ao Cristianismo como religião esponsal: «É grande este mistério; eu o entendo em relação a Cristo e à Igreja!» (5, 32). Tal realidade não pode ser compreendida segundo o padrão da antropologia naturalista, tão disseminada na cultura actual, mas somente quando corporizada na substância da Fé.