A lei que autoriza a gestação de substituição em Portugal (Lei n.º 90/2021) é de 16 de Dezembro de 2021 e, não obstante, este é um procedimento ainda inacessível no país por ausência de regulamentação.

A primeira tentativa de regulamentação da lei data de Maio de 2022, com a redação de um anteprojecto de diploma por parte da Comissão de Regulamentação. Depois…, nada se concretizou. A segunda tentativa data de Abril de 2023 e o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida apresentou de imediato o seu Parecer, tal como já tinha feito no ano anterior.

Como bem compreendemos, a regulamentação de uma Lei especifica-a, isto é, traduz as suas orientações gerais em regras concretas para orientar os procedimentos devidos na obediência à Lei. Como bem compreendemos, exige-se então prever todas as situações possíveis a que a Lei se possa aplicar e para as quais importa dispor de regras objectivas, claras e inequívocas para a implementar.

Tomemos um exemplo. Nasce um bebé por via de gestação de substituição. A última proposta de regulamentação prevê que, se a mulher gestante não revogar o seu consentimento de gestação no termo do qual entrega a criança aos contratualizantes, o bebé seja “imediatamente” entregue aos potenciais beneficiários que celebraram o contrato com a gestante. Estes podem, também de imediato, sem saírem mesmo da maternidade, proceder ao registo do bebé declarando-se como pais. Também o podem levar para sua casa assim que a criança tenha alta hospitalar.  O leitor dirá: está tudo bem! Sim, parece que “tudo está bem, quando acaba bem”!

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Porém, a legislação portuguesa também estabelece o direito de a gestante revogar o seu consentimento, dentro de um prazo que pode chegar até aos 20 dias. Ou seja, o bebé poderá já estar em casa dos pais, sendo obrigatório que um dos membros do casal seja progenitor biológico, quando esta mulher, que não tem qualquer relação biológica com o bebé, o reivindica como seu filho. E agora?!?

Qual o processo através do qual se comunica aos pais que a gestante revogou o consentimento? Quem vai a casa dos pais retirar o bebé para o entregar à gestante? Nada disto está previsto na proposta de regulamentação…

E quando – saltando aqui por cima do fosso ou vazio jurídico, numa matéria tão sensível – a mulher gestante vai registar, como sua filha, aquela criança que deu à luz, o que acontece ao registo de filiação anteriormente feito em benefício dos pais? E se, no registo a fazer pela mulher gestante, os contratualizantes também quiserem colocar o seu nome, como a proposta de regulamentação prevê? Não ficará a criança com uma tripla progenitura registral, tal como o Conselho Nacional de Ética apontou…?

E podíamos prosseguir…: quando a gestante reivindica, como seu, o filho biológico de outrem, e no registo da criança constam os nomes dos três, quais os deveres que se impõem (pensão de alimentos…?) e os direitos que assistem (visitação…?) aos pais biológicos que deixaram de ser os acolhedores do bebé? Mais uma vez, nada disto está previsto na proposta de regulamentação…

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida apontou, entre outros problemas, estes dois, gravíssimos, à proposta de regulamentação da Lei. Não complicou o processo em causa, mas certamente mostrou a fragilidade, as lacunas, a insuficiência da sua regulamentação. Reconhece-se que o processo de regulamentação se vem prolongando muito para além do desejável, do razoável ou mesmo do admissível; reconhece-se que a regulamentação é urgente. Ainda assim, espera-se que o bom senso prevaleça e que não se prefira a precipitação da Lei à perfectibilização da regulamentação, para cujo caminho o Conselho apontou, tal como já tinha feito há um ano atrás.