A lei de gestação de substituição foi promulgada em Dezembro de 2021. Desde então, foram elaboradas três propostas de regulamentação, realçando-se o empenho do Senhor Ministro em auscultar sempre o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), o qual as apreciou com espírito construtivo e sentido de responsabilidade. Assim sendo, não se limitou a apontar omissões, insuficiências ou equívocos, mas principalmente identificou os aspectos eticamente mais sensíveis a acautelar e destacou as pessoas mais vulneráveis envolvidas a proteger. Indicou igualmente os requisitos necessários e suficientes a atender para que a regulamentação cumpra o seu desiderato não apenas no plano formal, permitindo a implementação da lei, mas do ponto de vista substancial, para garantia dos direitos e interesses de todos os implicados.

Não obstante este exercício reiterado, as preocupações que o Conselho Nacional de Ética vem expressando desde a apreciação da primeira proposta, em Maio de 2022, persistem em aberto ou sem resposta adequada, na terceira versão apresentada, em Agosto de 2023, o que impossibilita a aprovação para a qual temos procurado contribuir.

É possível que alguém possa vir precipitadamente afirmar que as reservas e as recomendações que o Conselho mais uma vez apresentou obstaculizam o processo legislativo. Porém, o leitor, como todo o cidadão comum, compreende que uma deficiente regulamentação estabelecida não é preferível a uma provisória ausência de regulamentação. O leitor também não terá dúvidas em avaliar negativamente uma regulamentação que não define cabalmente os direitos da criança ou os direitos e deveres dos designados beneficiários do processo de gestação de substituição, no caso (excepcional, espera-se; mas possível, observa-se) de a mulher gestante revogar o seu consentimento e se recusar a entregar a criança, reclamando-a para si. A situação, hipotética, mas que a regulamentação tem de acautelar, é a de a criança nascida por gestação de substituição se tornar filha legal de uma mulher com a qual não tem relação biológica (sem prejuízo da dimensão epigenética), ao mesmo tempo que os seus pais biológicos, que sempre a desejaram e desejam, possam ficar arredados do seu futuro. Por esta razão, entre outras que os pareceres especificam, o Conselho Nacional de Ética, no cumprimento da sua missão e, aliás, à semelhança de outras entidades, tem insistido na necessidade de explicitar os direitos e deveres de todas as partes envolvidas neste processo tão emotivo para todos e, sobretudo, para zelar pelo superior interesse da criança. Esta, após o nascimento, terá pendente a família (nuclear e alargada) que a irá acolher como filha, a dos beneficiários ou a da mulher gestante…, sem que se determine a duração máxima deste limbo, desta incerteza.

Poder-se-ia argumentar, em prol da mais recente proposta de regulamentação, que todas as questões em aberto serão contempladas no contrato que a gestante, muito antes de o ser, celebra com os beneficiários, que poderão nunca vir a sê-lo. Mas será um contrato, que plasma uma relação altruísta em matéria de profunda intimidade e de elevada carga emocional, capaz de contemplar todas as circunstâncias possíveis? E, mais importante, se vier a ser contestado, como resolver os diferendos? Em tribunal, através de processos potencialmente morosos? E a criança?

Por estas razões, a proposta de regulamentação tem vindo a justificar parecer ético desfavorável por parte do CNECV. E não colhe transformar a frustração justificada pela delonga do processo legislativo em críticas infundadas dirigidas aos organismos que cumprem a missão que a sociedade lhes incumbiu: a de zelarem, de forma ponderada e equitativa, pelos interesses de todos. Diria, de imediato, que se teriam enganado no destinatário, mas, principalmente, que epítetos fáceis como são os de conservadorismo não podem ser atribuídos apenas porque uma decisão colegial, de um órgão académico-cientificamente diverso e ideológica e axiologicamente plural, não alinha pela posição que lhe é crítica.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida não é conservador nem progressista, mas tão somente rigoroso na reflexão, ponderado na deliberação, construtivo na decisão. Hoje poderá refletir uma corrente de pensamento, amanhã outra, mas espera merecer sempre o reconhecimento de idoneidade de todos em relação aos seus pareceres. E no que se refere ao presente, ao da regulamentação da gestação de substituição, especificámos, mais uma vez, os requisitos éticos a observar na implementação da lei, de modo a que esta não venha a constituir mais um problema no domínio tão delicado e sofrido da infertilidade, mas seja uma solução apaziguadora.

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