À medida que a pandemia do Covid-19 progride e se alastra, agrava-se a escassez dos recursos para a saúde e corre-se o risco de chegar ao momento dramático, que se pretende evitar, de se ter de distribuir os insuficientes recursos pelos muitos necessitados.

De facto, não há nenhum país do mundo que consiga dispor de meios suficientes para satisfazer todas as necessidades de saúde em qualquer circunstância. Numa situação excepcional, como a de pandemia, esta realidade torna-se tão mais grave quanto evidente. Percebemos, através da comunicação social, que um pouco por todo o lado faltam desinfectantes, máscaras, batas, zaragatoas e reagentes para os testes, etc. Assistimos à deslocação de doentes Covid-19 de França para a Alemanha, de Itália para a Suíça, por falta de camas; em Espanha vimos hospitais com doentes deitados no chão de corredores. Em alguns países com um elevado número de doentes Covid-19 em Unidades de Cuidados Intensivos faltam ventiladores mecânicos… E quando o número destes equipamentos é inferior ao número de doentes que deles precisam para sobreviver, tem de se escolher quem beneficiará do ventilador e terá hipóteses de sobreviver e quem ficará excluído de ventilação assistida e morrerá inevitavelmente.

Por isso há actualmente no mundo uma mobilização geral de eticistas para assistirem os médicos na sua tomada de decisão, identificando os requisitos éticos que a legitimam. A decisão é médica, mas os critérios têm de ser éticos.

A Organização Mundial de Saúde e a UNESCO já reuniram comissões de ética e produziram documentos de apoio à alocação ética dos recursos. As orientações éticas servem dois propósitos fundamentais. O primeiro é o de garantir uma distribuição dos recursos de saúde consensualmente reconhecida como justa, o que exige a formulação de critérios que não violem a dignidade humana. O segundo é o de auxiliar o médico na sua decisão, assim contribuindo para mitigar o peso desta decisão que, a curto e médio prazo, provocam uma grave exaustão e profundo desgaste emocional, psicológico e mental (burn out) nos profissionais de saúde.

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Na assistência ética à decisão médica, há uma distinção tão imperativa quanto urgente entre “racionamento” e “racionalização” dos recursos para a saúde. Estes são conceitos facilmente confundíveis, por serem quase homófonos e, sobretudo, por terem uma acentuada proximidade conceptual, decorrendo também ambos da escassez de recursos. Porém, referem-se a procedimentos bem distintos que se fundamentam também diferentemente e se revestem de uma distinta legitimidade ética.

O “racionamento” tem uma conotação tendencialmente negativa e refere-se a uma distribuição limitada, à distribuição de uma quantidade reduzida de bens que, como tal, só pode contemplar um número reduzido também de pessoas. São então estabelecidos critérios de distribuição dos bens disponíveis. Por exemplo, quem tem acesso aos testes existentes? Os profissionais de saúde que não só são as pessoas mais expostas, mas também as mais necessárias para tratar os doentes? Os grupos mais vulneráveis ao Covid-19, como os idosos, sobretudo os internados em lares? Nesta situação o imperativo ético é o de transparência de critérios.

A “racionalização”, por sua vez, tem uma conotação tendencialmente positiva e refere-se à optimização ou rentabilização dos recursos existentes, isto é, ao aproveito máximo de todos os recursos na produção do máximo bem possível. Quem vai ter acesso aos ventiladores quando, devido ao seu número insuficiente, nem todos podem beneficiar deles? Nesta situação o imperativo ético é o de estabelecimento de critérios objectivos e justos.

A distinção entre estas duas realidades torna-se mais evidente se as exemplificarmos e compararmos com um quotidiano normal do passado.

Numa situação “normal”, o hospital prioriza o atendimento dos doentes clinicamente mais graves (triagem), na convicção de que os outros doentes, menos graves, podem esperar um pouco mais tempo, mas que virá a atender todos em tempo útil. Uma crise pandémica não é, porém, uma situação normal.

Numa situação de “racionamento” o hospital sabe não ter capacidade para atender todos os doentes e estabelece critérios para selecionar aqueles de que pode cuidar. Esses critérios podem ser muito variados: os doentes mais novos, os nacionais, os profissionais de saúde, as figuras do Estados, etc. Do ponto de vista ético o mínimo exigível é que os critérios sejam transparentes, racionalmente justificáveis e consensualmente reconhecidos como justos. Em todo o caso, violarão sempre o princípio da dignidade humana porque a selecção será feita a partir de características pessoais, atribuindo um diferente valor a diferentes pessoas que, na fidelidade ao princípio da dignidade humana, têm todas o mesmo valor, isto é, um valor absoluto e incondicional.

Numa situação de “racionalização” o hospital também sabe não ter capacidade para atender todos os doentes e ter de estabelecer critérios para selecionar aqueles de que pode cuidar. Porém, desloca os critérios de ponderação da pessoa em causa para a origem do problema: a escassez dos recursos. Importa então optimizá-los, isto é, produzir o máximo bem com os poucos recursos existentes. A escolha passa então a ser feita em função das probabilidades de sobrevida, beneficiando dos cuidados quem tem hipóteses efectivas de sobreviver e encaminhando-se os doentes com pior prognóstico para cuidados de conforto (paliativos). Numa situação normal, prioriza-se os doentes com pior prognóstico; numa situação de escassez de recursos, excluem-se os que têm pior prognóstico.

A distinção torna-se ainda mais clara se aplicarmos os dois critérios de selecção – racionamento e racionalização – a pacientes idosos com o Covid-19. Se, como se anunciou em relação a alguns países, se escolhesse não tratar quem tem mais de 80 anos, ou 75, ou 70, isto é, se se excluíssem pessoas do acesso aos cuidados terapêuticos em função da idade, estar-se-ia a objectivar a pessoa à sua idade, a reduzir a percepção da pessoa à sua idade (com a agravante de que será considerada a sua idade cronológica e não a sua idade biológica). Isto é racionalização. A racionalização exige que se priorizem as pessoas que têm possibilidade de beneficiarem efectivamente do ventilador, o qual terá uma função de assistência terapêutica e não apenas paliativa. A inclusão ou a exclusão não decorre de características da pessoa, mas da possibilidade de sobrevida.

O critério da “racionalização” dos recursos rejeita a discriminação inerente ao racionamento, evita a irresponsabilidade de manter os critérios de triagem para situações normais e também a desresponsabilização da arbitrariedade de atender por ordem de chegada, respeitando a dignidade absoluta e incondicionada de cada um, mesmo quando não consegue evitar a morte de alguns. A indignidade suprema está na ausência de recursos de saúde, na morte real de uma vida possível…

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