Não alinho em teorias da conspiração, mas admito que as minhas inferências de hoje poderiam roçar a linha vermelha da objectividade e do rigor reflexivo. Fico (até por isso também) na expectativa que o futuro me desminta categoricamente e rotule estas minhas palavras como um fugaz devaneio. A que me refiro? Ao Natal, ao apagamento do Natal do calendário deste ano.

Ao Natal?! Por que falar do Natal em Outubro? Pois foi exactamente a interrogação que formulei, em silêncio, quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, no dia 9 de Outubro, afirmou, sem qualquer aparente contexto: “Se é preciso repensar o Natal em família, repensa-se o Natal.” Na ocasião fiquei perplexa. Que disparate – pensei – ainda falta tanto tempo para o Natal, quase três meses… Mas devo reconhecer que esta foi apenas uma reacção espontânea, súbita, e depressa considerei que não podia dispensar uma outra mais ponderada. Afinal, seria verdadeiramente ingénuo pensar que o nosso Presidente diria algo sem qualquer justificação, sem qualquer intencionalidade, quer se concorde ou se discorde com os pressupostos ou os objectivos.

Lá pensei um pouco e ainda ouvi alguns comentadores referirem-se-lhe. No entretanto, não me ocorreu uma razão plausível para semelhante intervenção do Presidente e os comentadores eram unânimes em não perceber a sua pertinência e em desvalorizar a sua ocorrência. Foi o que fiz também, até porque não me pareceu que merecesse o meu tempo.

A resposta veio mais tarde, como um murro no estômago, quando o Governo, no dia 22 de Outubro, anunciou a proibição de circulação entre concelhos de 30 de Outubro até 3 de Novembro (mas não este fim-de-semana, em que milhares viajaram do Norte para ver a Fómula 1 no Algarve, com autorização da Direcção Geral da Saúde). Não se anunciaram então restrições ao trabalho, ou à educação, nem mesmo a eventos desportivos ou culturais; mas apenas à reunião de famílias para visitarem os seus falecidos. Tornou-se óbvio, que da panóplia de interpretações que têm sido propostas para a origem dos surtos de infecções prevaleceu a da família. É em família que hoje o poder político considera dar-se o contágio. É evidente que esta tese, à semelhança de todas as que anteriormente já foram aventadas, não está validada e é pouco sustentável. Não foi no confinamento, em família, que as pessoas se infectaram; foi quando saíram para trabalhar, entraram nos transportes e quando começaram a frequentar os restaurantes e os espectáculos, seguindo, aliás, as orientações dos responsáveis políticos porque a economia tinha de despertar. E sim, é verdade, a opção nunca podia ser entre a saúde e a economia; e o desafio sempre foi o equilíbrio entre ambas. À margem, parece ter ficado a família.

Agora proíbe-se a visita à família falecida, no Natal proibir-se-á a reunião da família viva. A mesma proibição de circulação entre concelhos no Natal manterá, deliberadamente, as famílias separadas. Afinal, no princípio de Outubro, o Presidente não tinha resistido a deixar cair uma migalha do que já então seria tema de conversa no seio da elite política. Agora, atiraram-nos mais algumas migalhas, suficientes para nos indicarem o caminho, e temos dois meses para nos irmos acomodando e aceitando o apagamento do Natal do calendário.

Impedir a reunião das famílias não terá impacto económico superior à realidade de hoje, o mesmo se podendo dizer do impacto político. Aliás, a este nível, é sempre bom encontrar um culpado e agir em conformidade. O impacto é, afinal, tão somente afectivo e este parece descartável. Mas não é verdade. A partilha de afectos em família fortalece-nos, ajuda-nos a manter o equilíbrio emocional e intensifica a nossa resiliência. E tem sido um ano tão difícil, de empobrecimento generalizado e de desemprego de muitos, de guetização dos mais velhos e de restrição dos mais novos, de adaptação de todos às novas rotinas do quotidiano, e a ameaça constante de agravamento do estado de saúde com adiamentos sucessivos dos cuidados necessários e urgentes, num distanciamento da vivência de sentimentos, num enfraquecimento das emoções. O remoto beneficio para a saúde pública compensará a severidade do afastamento das famílias? Não nos quebrem o ânimo.

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