A vitória de Trump não é um revés – é um despertador. É a oportunidade de ouro para a Europa finalmente assumir o seu destino. Em vez da habitual onda de ansiedade coletiva que se instala nas capitais europeias, este momento exige uma reflexão mais profunda: por que razão continuamos a estremecer com cada mudança política em Washington? Como pode o maior bloco económico do mundo, berço de algumas das melhores empresas e universidades, detentor de um dos mais elevados padrões de vida globais, permanecer numa posição de dependência estratégica tão profunda?
O preço desta dependência psicológica dos Estados Unidos da América já não é apenas teórico – é tangível e crescente. Na tecnologia, somos reféns das plataformas digitais americanas, enquanto os nossos talentos e startups fogem para Silicon Valley. Geopoliticamente, somos forçados a alinhar com conflitos que não servem os nossos interesses, deteriorando relações com parceiros naturais. Na energia, assistimos a um paradoxo revelador: sob pressão externa, a Europa optou por abandonar fontes de energia mais económicas em favor de importações significativamente mais caras dos EUA. Que tipo de parceria é esta, onde somos pressionados a prejudicar a nossa própria competitividade económica? É como uma amizade onde um dos ‘amigos’ insiste que o outro faça compras na sua loja, apesar dos preços serem substancialmente mais elevados. Será esta a marca de uma verdadeira parceria estratégica, ou o sintoma de uma relação desequilibrada que precisa urgentemente de ser repensada?
Consideremos um caso particularmente ilustrativo desta nossa miopia estratégica. A narrativa dominante sobre a China, liderada pelos EUA e seguida acriticamente pela Europa, apresenta o desenvolvimento chinês como uma ‘ameaça’. Mas perguntemo-nos: qual é, afinal, o crime da China? Ter 1,4 mil milhões de habitantes que, tal como os europeus, aspiram à prosperidade? Ter líderes que planeiam décadas à frente para concretizar essa aspiração, em vez de se limitarem a ciclos eleitorais?
Criticamos Pequim por planear a longo prazo, por investir sistematicamente no desenvolvimento tecnológico e na criação de infraestruturas fundamentais para o futuro. Mas não é precisamente isto que a Europa deveria estar a fazer? Em vez de observarmos com uma mistura de apreensão e inveja o desenvolvimento dos ‘outros’, porque não definimos nós próprios onde queremos estar daqui a 10, 20, 30 anos e começamos a trabalhar decisivamente para lá chegar?
A ironia é palpável: quando os europeus construíram impérios, isso era “civilização”. Quando outros povos buscam desenvolvimento, isso torna-se uma “ameaça”. Esta hipocrisia revela mais sobre nós do que sobre aqueles que rotulamos como adversários.
Reflitamos agora sobre a importância estratégica de desenvolver uma verdadeira parceria com África. Os números falam por si: em 2050, o continente terá 2,5 mil milhões de habitantes, 60% com menos de 25 anos – um mercado consumidor maior que China e Índia combinadas. Esta não é apenas uma projeção estatística, é a base para uma transformação económica inevitável.
O Plano Marshall ensinou-nos uma lição clara há 70 anos: ao financiar a reconstrução europeia, os Estados Unidos não estavam a fazer caridade – estavam a estabelecer estrategicamente o seu maior parceiro comercial futuro, uma decisão que continua a gerar benefícios mútuos até hoje. Da mesma forma que uma Europa próspera se tornou um mercado vital para produtos americanos e um polo de inovação, uma África próspera representaria um motor de crescimento sem precedentes para a Europa.
Este período da história irá definir que papel a Europa terá num futuro próximo e também de longo prazo: como parceiro estratégico que contribui ativamente para esse progresso, criando um ecossistema económico unificado que favoreça ambos os continentes ou podemos permanecer com uma perspetiva neocolonial obsoleta (das lições de moral) e desperdiçar esta oportunidade sem paralelo. Uma África próspera não representa apenas um amplo mercado para produtos europeus de valor acrescentado, mas também uma cadeia de abastecimento próxima e estável, além de um parceiro ativo que pode impulsionar o nosso próprio desenvolvimento. A história ensina-nos que a prosperidade partilhada multiplica oportunidades – o sucesso dos nossos parceiros impulsiona o nosso próprio progresso. Esta não é uma questão teórica: as escolhas que fizermos hoje, as parcerias que escolhermos construir ou negligenciar definirão não apenas a posição da Europa nas próximas décadas, mas também se seremos atores ou meros espectadores desta mudança inevitável.
Porém, para concretizar esta visão, é fundamental reconhecer que os nossos desafios fundamentais não residem em Washington, Moscovo ou Pequim – estão sim em Bruxelas, Berlim, Paris, Lisboa e nas outras capitais europeias. Será que temos os líderes que este momento histórico exige? A evidência sugere que não: temos gestores onde precisamos de estadistas – líderes que se preocupam mais em gerir crises do que em construir futuros. A diferença é fundamental e preocupante: um gestor procura apenas manter o sistema a funcionar, um estadista visa transformá-lo para melhor. É como ter um capitão que se preocupa apenas em manter o navio a flutuar, sem nunca decidir para qual porto navegar. Num momento que exige visão, coragem e capacidade de transformação, encontramo-nos com líderes mais preocupados com sondagens para as próximas eleições e do que com o destino do projeto europeu. Poderemos aspirar a um papel relevante no século XXI com uma liderança presa a paradigmas do século XX?
Os Estados Unidos continuarão a ser um parceiro privilegiado e as suas perspetivas serão sempre valorizadas. No entanto, chegou o momento de nos concentrarmos mais naquilo que temos e podemos fazer por nós, europeus, pois serão as nossas próprias ações e escolhas que, em última análise, determinarão o nosso futuro. É como numa amizade profunda e duradoura: por mais forte que seja o laço entre nós e o nosso melhor amigo, isso não significa que devamos deixar passar outras oportunidades valiosas de crescimento e desenvolvimento. A verdadeira amizade, afinal, fortalece-se na independência mútua, não na dependência unilateral.
É precisamente neste espírito de independência e autodeterminação que termino com a sabedoria deixada pelos destemidos navegadores portugueses de outrora, que nos ensinaram que ‘quem olha sempre para o mesmo horizonte nunca descobrirá novos mares.’ Esta lição é particularmente relevante para a Europa atual. Durante demasiado tempo, permanecemos fixados num único horizonte. Como complemento, a sabedoria milenar chinesa também nos recorda que ‘a melhor altura para plantar uma árvore foi há 20 anos, mas a segunda melhor altura é agora.’ O momento de expandir os nossos horizontes e traçar o nosso próprio rumo é hoje. O futuro pertence àqueles que têm a coragem de o imaginar e a determinação de o construir.