1 Como escreveu (num dos muitos seus livros, intitulado «À escuta do silêncio») o famoso Padre Maurice Zundel (1897-1975), «É claro que nós [pessoas humanas] não podemos permanecer como objectos, mas devemos transformar-nos em sujeitos».

2 Ora, para ser sujeito, e como bem defendeu um outro grande pensador contemporâneo, não basta fazer «algumas» coisas; é preciso ser «alguém». Os animais irracionais também fazem coisas; também se relacionam entre si, não raro numa boa ordem entre os da sua espécie; também fazem escolhas mais ou menos inteligentes; e também operam inteligentemente sobre o seu ambiente. Por isso, nem sequer é ilógico defender racionalmente a liberdade individual dos animais irracionais, e a sua correspondente dignidade. Mas nós não lhes reconhecemos uma dignidade igual à da pessoa humana. Porquê? Porque, como expressou lapidarmente Immanuel Kant, aliás numa versão desconfessionalizada da sua pessoal concepção cristã: «a pessoa é fim em si mesma»: «Die Person als Zweck an sich».

3 A questão que portanto se nos impõe irrecusavelmente é a de que «ser pessoa» é «ser fim em si mesma». Nisto consiste a sua dignidade. Mas ser «fim em si mesma» não é «ser fim de si mesma». É mesmo o oposto. Se a pessoa fosse «fim de si mesma», então o seu fim, isto é, a sua dignidade, seria aleatoriamente determinado pelo aleatório exercício sua liberdade. A dignidade passava a depender de uma decisão da pessoa. No limite, quem não quisesse ser digno, podia decidir não o ser. Por exemplo, degradando-se; prostituindo-se; dando-se em escravidão; aceitando trabalhar para outrem sem direitos; etc.

4 É evidente e incontornável que a dignidade da pessoa, para ter sentido, é anterior à sua liberdade. Se a dignidade de cada um for definida pela liberdade de cada um, ou (tanto faz) for definida pela maioria para valer para todos, então a dignidade pessoal já não é o fundamento dos direitos humanos, mas passa a ser aquilo que o (alegado) exercício de direitos humanos decidir. Inverte-se a relação entre dignidade humana e direitos humanos: em vez de a dignidade estar primeiro e determinar os direitos e as liberdades, são os direitos e as liberdades individuais que determinam a dignidade.

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5 Ora, nunca foi assim o entendimento do constitucionalismo moderno, desde as duas declarações americanas de direitos humanos (a Declaração da Virgínia e a Declaração da Independência dos Estados Unidos, ambas do ano de 1776); e desde a Declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão, de 1789. Nem  é assim segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948. Aqui se diz, no seu primeiro artigo: «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade». Nesta última declaração está bem patente que primeiro está a dignidade da pessoa humana, e depois os direitos da pessoa que por isso se dizem direitos humanos. E note-se que aí também se afirma que a os seres humanos são «dotados de razão e de consciência». Isto quer dizer que além da razão está a consciência. Instância esta que, portanto, é inata nos seres humanos; e é distinta da razão, pelo que não poder ser «simplesmente» determinada pela racionalidade ou pelas «racionalidades».

6 Por isso penso que o direito político não pode julgar o suicídio. Mas exactamente com o mesmo fundamento não pode legalizar a assistência ao suicídio. E muito menos pode legalizar a eutanásia. Com este passo, se for constitucionalizado, já não será mais a dignidade da pessoa humana a determinar as leis; e passarão a ser estas a «de-finir», isto é, a dizer qual é o fim da dignidade humana. Por exemplo, decretando que é indigno viver no sofrimento. A ponto de se quererem obrigar legalmente os médicos a matar pessoas. Que nem a objecção de consciência lhes restará.

7 Adeus aos 20 séculos de cultura de inspiração cristã. Adeus ao Iluminismo de Immanuel Kant. Adeus ao constitucionalismo moderno. A pessoa humana não vai mais ser «fim em si mesma». E vai passar a ser «fim de si mesma». A liberdade individual, ou a lei da maioria, é a mesma coisa, passa a determinar a dignidade pessoal.

8 Os romanos assentaram que o fundamento da lei era o bel-pazer do poder político. «Quod principi placuit, legis habet vigorem». Esta tese sobreviveu até hoje, em várias declinações do positivismo jurídico. O Constitucionalismo moderno, tanto na versão das declarações americanas como na francesa, manteve reverência a princípios e a transcendências que não dependem da lei mas que se impõem à lei. Valia a pena recomendar a sua leitura. O mesmo a Declaração Universal. Hoje, parece que o «pós modernismo» vai conseguir a habilidade retórica de legislar que a dignidade da pessoa está na sua livre decisão. No seu livre arbítrio.

9 Como? Muito fácil. «Redefinindo» os princípios constitucionais através das leis. Dando fins legais aos princípios constitucionais. Portanto, adeus princípios constitucionais, que presidem às leis.

10 Digam-me lá, então, se a democracia, qualificada de constitucional, fica a ser alguma coisa mais do que uma contra-dança de decretos entre maiorias parlamentares partidárias, que, vez-à-vez, podem re-de-finir os princípios constitucionais.