Faltam médicos no Serviço Nacional de Saúde. No final de junho existiam 1,057 milhões de portugueses sem médico de família, mais 32,5% (+259 mil) que em junho de 2019 – antes da pandemia.
Com os números a contrariarem o prometido, e com o problema a ser cada vez mais difícil de esconder, a solução tem passado pelo caminho mais fácil: encontrar culpados.
Da ganância à falta de ética, a Ordem dos Médicos parece ser o mais recente “alvo” deste discurso populista por, aparentemente, fazer “lobby” e condicionar o acesso à profissão.
Infelizmente, como qualquer populismo, mostra uma estranha “alergia” aos números:
- Portugal é o 3.º país da OCDE com maior rácio de médicos per capita
- O número de alunos nas faculdades de medicina em Portugal triplicou nos últimos 20 anos
- O número de médicos em Portugal cresceu a um ritmo muito superior (mais do dobro) ao da média da restante União Europeia a 27 (2014-2018)
A interpretação destes dados pode ser complexa, mas se há algo em que todos podemos concordar é que, como órgão “lobbista”, a Ordem dos Médicos é de uma incompetência gritante. Não só já deixou entrar “gente” a mais, como parece não ser capaz de travar a entrada de absolutamente nenhum médico.
A quem interessa, então, este discurso? E porque continuam, efectivamente, a faltar médicos no SNS?
Numa realidade cada vez mais longínqua, hospitais públicos e médicos co-existiam e cooperavam, sem competirem diretamente entre si. O médico trabalhava no Hospital público e, com “carreira” já feita, abria o seu próprio consultório. Ser formado e ficar a trabalhar no Hospital público era o sonho de qualquer médico português.
Hoje em dia, e de forma muito brusca, tudo mudou. O aparecimento dos grandes grupos privados de Saúde transformou por completo o SNS. Pela primeira vez, o serviço público precisou de ser competitivo. De ser capaz de atrair e reter profissionais. E, ao primeiro impacto, falhou redondamente.
Fazendo uma análise justa, não se pode só culpar os governos ou as administrações hospitalares públicas pelo que aconteceu ao SNS. A luta foi gritantemente desigual. De um lado, competia um SNS pobre, velho, amarrado às práticas da administração pública, que não consegue premiar os bons profissionais, nem despedir os maus.
Do outro, surgiram os hospitais “do futuro”, endinheirados, com instalações de topo, onde os melhores médicos são recompensados e onde os que prejudicam a equipa são afastados.
Foi, como se esperava, uma carnificina. Os melhores médicos do SNS foram progressivamente mudando para o sistema privado, sobrando um punhado de honrosos “heróis”, que se sacrificaram em nome dos doentes que só podiam recorrer ao SNS.
Infelizmente, com a COVID-19, as assimetrias entre público e privado, foram ainda mais dolorosas e difíceis de aceitar. Nos hospitais privados, os médicos especialistas continuaram a ver os seus doentes. À distância ou em modelos híbridos, a adaptação foi rápida e eficaz. Já para os “heróis” do SNS… a realidade foi bem diferente. Afastados dos seus doentes e em funções para as quais nunca tinham sido treinados, foram sacrificados e arregimentados para unidades COVID em nome de um “bem comum” que, infelizmente, “toca” sempre aos mesmos. A mensagem, ainda que desprovida de intenção, foi clara: tivessem fugido a tempo.
Como por milagre, e no meio da tempestade, surge uma secreta ilusão de um sistema melhor. Os primeiros centros de responsabilidade integrada (CRI) chegaram ao SNS e trazem com eles a promessa de hospitais flexíveis, capazes de recrutar quem precisam e de premiar quem trabalha. Aliados ao novo modelo das USF, deixam no ar a esperança de um SNS competitivo, inovador, onde dará gosto trabalhar.
Mas fazem mais do que isso. Trazem a esperança de que o nosso SNS também se sabe adaptar, admitir que erra e reinventar-se. E de que, talvez, até possa dar a mão aos seus antigos médicos e perceber que, mesmo no “privado”, são parte da solução e não do problema.
Apesar deste mundo distópico – onde público e privado, ambos competentes e competitivos, também sabem colaborar – ser por agora uma mera fantasia, o aparecimento dos CRI é uma lufada de ar fresco e um passo decisivo para a criação de um SNS inovador. Cabe agora, a todos os envolvidos, lutar para impedir que o mesmo preconceito ideológico que destruiu as PPP em Saúde – boas e más, de forma sectária e pouco racional – não destrua também esta boa iniciativa que, perigosamente semelhante a um sistema profissional, bem-sucedido e bem aceite pelos doentes, corre o sério risco de envergonhar quem faz “lobby” pela falta de médicos.
Tomás Pessoa e Costa é médico interno de Dermatologia no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central. Antigo atleta de alta competição de Judo, em 2016 teve a nota máxima na prova de acesso à especialidade médica e fundou a “Perguntas da Especialidade”, uma empresa de formação e apoio à decisão médica, vencedora do World Summit Awards Portugal 2020. Dá aulas de Medicina na Nova Medical School. É membro dos Global Shapers desde 2020.
O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.