Analisado à distância, o processo de degradação foi lento, mas preciso, consistente e certeiro. Lento, porque tem anos. Consistente, porque duradouro. Certeiro, porque atingiu os sustentáculos de um crescimento económico que se queria sustentável. Quando António Guterres nos vendeu uma paixão amolecida com uma expansão das despesas públicas impulsionadas pela queda dos juros, a economia cresceu alicerçada no sector de bens não transacionáveis, no consumo interno, mas não na produção ou sequer nas exportações. Em consequência disso, o endividamento externo atingiu valores alarmantes, como comprovámos mais tarde.

Entretanto, pouco ou nada se fez para contrariar a tendência em que o país se deixou arrastar com a anestesia monetária em que tornámos o euro. No meio do pântano demos pelos défices das contas públicas e, mais tarde, pelo que significava uma dívida pública elevada. O resgate da troika não foi só devido aos governos de José Sócrates, mas a um acumular de erros de governação que deram de si com a crise financeira iniciada em 2008.

Incapaz de assumir os erros, a maioria preferiu acreditar que a troika foi malvada. Conhecedor do que é a natureza humana e, possivelmente, um dos maiores sabedores do que é a alma portuguesa, António Costa conseguiu estar 8 anos a fazer de conta que não cortava na despesa ao mesmo tempo que fazia precisamente isso. Para tal, não cortou nos salários nem nas pensões, mas nos serviços, no investimento público, algo que os eleitores só se deram conta mais tarde (agora) quando António Costa já não é primeiro-ministro. Não foi por acaso que, logo que sentiu que as pontas estavam demasiado soltas, se pôs a mexer. Não foi o primeiro a fazê-lo. Nem será o último.

Sem reformas feitas, ficámos com um Estado que gasta em clientelas o que devia guardar para investimento público; um SNS que não tem médicos; alunos que não têm aulas; bombeiros sem subsídios de risco; Forças Armadas sem efectivos; conservatórias sem instalações adequadas; tribunais sem computadores; portuenses sem comboio para ir a Lisboa e lisboetas para irem ao Porto; empresas sem capital e funcionários sem salários adequados ao custo de vida; jovens sem empregos e portugueses sem casas. São cada vez mais as pontas soltas e o país está preso por um fio. Não Portugal (não se assustem), que dura há 900 anos, mas o nosso modo de vida, democrático e europeu, saído da luta política decorrida no período entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975.

Com uma maioria relativa muito curta, Luís Montenegro decidiu distribuir cheques e benesses para aplacar o descontentamento crescente e imparável. Podia ter apresentado uma visão para o país, encetado reformas, mesmo sabendo que seriam chumbadas no Parlamento. Com isso mostraria ímpeto reformista, vontade de mudar e, acima de tudo, separava as águas e obrigava o PS e o Chega a revelarem-se. Foi que Cavaco fez em 1985. Mas não. Preferiu o caminho mais fácil e com menos futuro. E é assim que, se o Orçamento de Estado for aprovado, seja com o aval do PS ou com o receio de eleições do Chega, o futuro de Montenegro será o que vimos na última quarta-feira. Tal como os bombeiros, muitos mais subirão as escadarias da Assembleia da República a exigir a sua quota-parte do bolo.

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