Não deixa de ser surpreendente que, a uma semana do aniversário da primeira aparição mariana em Fátima, o Governo, pelo despacho nº 5335-B/2020, publicado no Diário da República nº 89/2020, 2º Suplemento, Série II de 7 de Maio de 2020, decida pronunciar-se sobre “a forma de celebração das aparições de Fátima a 12 e 13 de maio”. Porquê surpreendente?! Porque sabe, há já alguns meses, a forma como essa celebração se vai realizar!

A peregrinação dos dias 12 e 13 de Maio, pela sua vertente internacional e pelo seu carácter multitudinário – provavelmente, a mais numerosa manifestação espontânea portuguesa – não é um evento que se prepare e realize com uma semana de antecedência. Por isso, se o Governo queria pronunciar-se sobre este acontecimento eclesial, tão querido dos portugueses e de tantos outros devotos de Maria, devia tê-lo feito, pelo menos, a meados de Março, quando já era conhecida a actual pandemia e se conjecturava a sua implicação na celebração de 12 e 13 de Maio em Fátima. Não agora, a uma semana do aniversário da primeira aparição mariana na Cova da Iria!

Pode ser que, na iminência da realização da Festa do Avante!, em princípios de Setembro, e depois da incrível manifestação da CGTP, em pleno estado de emergência e em escandalosa contravenção das normas então em vigor, o Governo tenha querido, com este despacho, dar aos portugueses uma aparência de abertura e de imparcialidade. Mas esta sua despropositada iniciativa peca por extemporânea e oportunista e é também uma inqualificável ingerência numa questão que é, apenas e só, eclesial. O Governo pode decidir o que se relaciona com a vida pública, mas o modo como cada confissão religiosa comemora as suas festividades, só à própria diz respeito, como é óbvio.

No preâmbulo às normas agora emanadas, lê-se: “entendendo como relevante para a comunidade católica portuguesa a celebração das aparições de Fátima, no dia 13 de Maio, e atendendo a que, mediante o cumprimento dos termos fixados no presente despacho, a saúde pública é adequadamente garantida, considera-se justificada e proporcional a realização da referida celebração, a qual, nos termos já oportunamente comunicados pela diocese de Leiria-Fátima, não contará este ano com a presença física de peregrinos no recinto do santuário.

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Vale a pena chamar a atenção para algumas pérolas desta peça jurídico-teológica-literária.

Como é sabido, nem todos os católicos acreditam nas aparições de Fátima, que não fazem parte do depósito da fé. Desgraçadamente, não obstante as provas que atestam a veracidade desses fenómenos, há quem não acredite que Maria apareceu, na Cova da Iria, entre Maio e Outubro de 1917. Mas – bendito seja Deus! – para dissipar quaisquer dúvidas a esse respeito, o Governo da República, por via deste seu despacho, entendeu por bem resolver definitivamente esta questão, declarando ao país que, como expressamente se refere neste despacho, houve mesmo “aparições”!  O Dr. António Costa dixit, ex cathedra.

Acto seguido, o Governo declara que, como o Bispo de Leiria-Fátima já disse que este ano não haverá a habitual comemoração da primeira aparição mariana, o Governo vem dizer… o que o Bispo já disse!! Por este andar, o Governo também poderá em breve declarar que, este ano, o dia 13 de Maio será mesmo depois do dia 12 e antes do 14 …

É muito sugestiva a forma de presença interdita: só se impede a “presença física”. Certamente que os teólogos, que assessoram o Governo em matéria tão sensível, ao escolherem esta adjectivação, tinham a intenção de não proibir a presença dos espíritos – sejam eles almas penadas, anjos, arcanjos, serafins, querubins ou, até, demónios, pois também estes desgraçados estão privados de natureza corpórea – cuja presença, não sendo “física”, está, portanto, autorizada pelo Governo.

No seu único número, o presente decreto determina que “A celebração das aparições de Fátima, nos dias 12 e 13 de Maio de 2020, no recinto do santuário de Fátima, possa contar com a presença dos celebrantes e demais elementos necessários à celebração, convidados do Santuário de Fátima e respectivos funcionários, os quais devem observar o distanciamento físico de dois metros entre si.

Refere-se “a celebração das aparições de Fátima”, mas deve ser lapso pois, salvo melhor opinião, a celebração não é das ‘aparições’, mas do seu aniversário, a não ser que o Governo, por artes que só ele conheça, consiga trazer de novo Nossa Senhora à Cova da Iria… Decreta-se que o que, em princípio, não se podia fazer, afinal pode-se fazer, precisamente no modo já estabelecido pelo respectivo bispo, que é, aliás, a única autoridade competente em matéria litúrgica.

Dizer que a celebração pode contar com os celebrantes não lembra a ninguém, excepto ao Monsieur de La Palice. A afirmação de que a celebração também pode contar com os “demais elementos necessários à celebração” é igualmente supérflua, por redundante: se são necessários, é óbvio que a celebração não pode ter lugar sem a sua participação! Caso contrário, é evidente, meu caro Watson, que não seriam necessários!

Mais é de espantar que, depois de se dizer que podem participar na celebração os que nunca poderiam a ela faltar, por serem ‘celebrantes’ ou ‘necessários à celebração’, depois se acrescente que também poderão estar presentes, supõe-se que não só em espírito como também fisicamente, os “convidados do Santuário de Fátima”! Ou seja, se o santuário tiver a magnanimidade de convidar todos os portugueses, todos os habitantes da península, todos os católicos, ou até mesmo todos os chineses, o Governo não se opõe, desde que, claro está, observem a distância ‘física’ de “dois metros entre si”!

Concluindo e resumindo, o Governo achou por bem determinar que, afinal, podem ir a Fátima, para as celebrações do 12 e 13 de Maio, todas as pessoas que quiserem porque, sendo o santuário católico, ou seja universal, decerto que não vai discriminar os ciganos, nem os ateus, nem os crentes de outras religiões, nem os cidadãos estrangeiros…

Esta tardia e estranha generosidade do Governo da nação com a Igreja católica não parece ser, contudo, inocente. Na ausência deste despacho, os peregrinos poderiam culpabilizar o Governo por não lhes ter sido permitida, pela primeira vez na centenária história de Fátima, a participação na celebração religiosa comemorativa da primeira aparição mariana. Mas, graças a este aparentemente inócuo despacho, a quem proteste por não ter podido ir, este ano, nos dias 12 e 13 de Maio, à Cova da Iria, o Governo poderá dizer que a culpa é do Santuário e, portanto, da Igreja, porque, por este seu despacho, o Governo autorizou a presença física de todos os “convidados do Santuário de Fátima”!

Espero bem que a Igreja católica que, desde que se declarou esta pandemia, tem dado um tão bom exemplo de prudência e responsabilidade cívica, sobretudo através do seu episcopado, não caia na esparrela de alterar o que sabiamente já determinou, certamente com grande pena dos pastores e dos milhares de peregrinos que, este ano, não poderão deslocar-se fisicamente à Cova da Iria, para as celebrações do 12 e 13 de Maio de 2020.

Felizmente, a Igreja católica não é a CGTP, nem as celebrações do 12 e 13 de Maio são comparáveis à festa do Avante! Talvez a escusada, desajeitada e extemporânea autorização governamental para essas cerimónias religiosas não seja inocente. Com efeito, pode ter sido uma forma oportunista do Governo, de uma só cajadada, agradar agora aos católicos, para depois poder satisfazer o eleitorado comunista. Que Nossa Senhora de Fátima valha aos nossos governantes, não seja que o tiro lhes saia pela culatra.