“A 80 quilómetros a nordeste de Manhattan, já no estado vizinho do Connecticut, a pequena localidade de Westport, com 26 mil habitantes e uma das 20 mais ricas dos Estados Unidos, tornou-se um centro de propagação do novo coronavírus no dia 5 de Março. Por causa de uma festa de aniversário com 50 convidados, o número de pessoas com a doença covid-19 aumentou 40 vezes na cidade e surgiram muitos outros casos no Connecticut e em Nova Iorque, e até um caso na África do Sul – um dos convidados viajou de Joanesburgo para Westport e adoeceu assim que regressou a casa. A festa em Westport é agora conhecida nos media norte-americanos como ‘festa zero” (Público, 26-3-2020).

O comportamento dos participantes nessa festa zero, se consciente e voluntário, não foi apenas imprudente, mas criminoso. E, se as autoridades públicas sabiam da ocorrência e não a evitaram, foram também negligentes porque em caso nenhum, muito menos em estado de guerra, se brinca com a saúde pública.

A atitude antissocial de quem despreza as normas de prudência e arrisca a sua saúde e a dos outros não é exclusivamente norte-americana. Não faltam os inconscientes que, como Bolsonaro, entendem que a pandemia é uma histeria internacional e, por isso, desdenham as normas de segurança prescritas pelas competentes autoridades sanitárias.

A versão portuguesa deste comportamento tem um nome próprio: Chico-espertismo. Com uma sabedoria aprendida ao balcão da taberna e atestada pela suprema autoridade científica do barbeiro, que já nos tempos de D. Quixote era uma autoridade indiscutível na aldeia, o Chico-esperto sabe perfeitamente que os norte-americanos nunca foram à lua. Também sabe que as alterações climáticas se devem sobretudo aos foguetões que, de tanto furarem o céu, deram cabo do clima. Sabe igualmente que há bichos mais inteligentes do que os seres humanos o que, a julgar pelo próprio, talvez não seja falso.

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Graças a este seu universal conhecimento, adquirido na universidade da vida, entre copos de vinho e cortes de cabelo, o Chico-esperto acha que, aqui em Portugal, nunca acontece nada e, portanto, também não há-de ser agora que vai ocorrer uma catástrofe. O Chico-esperto ainda não sabe do terramoto de 1755, porque as revistas que manuseia na barbearia são antigas, mas não tanto. Também não sabe da pandemia que, há precisamente um século, vitimou, entre milhares de portugueses, os santos Francisco e Jacinta Marto, a quem apareceu Nossa Senhora em Fátima.

Com este autoconvencimento e sem fé em Deus, o Chico-esperto despreza, olimpicamente, as normas sanitárias em vigor, que considera uma ‘esquisitice’ e, por isso, ‘socializa’ com os amigos, com quem festeja alegremente o fecho das aulas, ou o eufemístico ‘trabalho em casa’.

Que fazer?! Os regimes autoritários, como os comunistas e quejandos, têm uma resposta fácil para este tipo de situações: vai tudo dentro! Decretam-se medidas extraordinárias e, quem as não acatar, vai preso. Mas, convenhamos que não é uma forma simpática de tratar os cidadãos, até porque pode levar a contaminar a população prisional que, essa sim, não tem escapatória possível.

Se as medidas dissuasórias das autoridades públicas não forem eficazes, mais do que enveredar por medidas repressivas, dever-se-ia responsabilizar quem incorre, por vontade própria e sem razão que o justifique, em comportamentos de risco.

Um exemplo. Uma turma de liceais ou universitários organiza uma festarola, criando um ‘evento’ social. A polícia tenta dissuadir os imprudentes estudantes, mas estes não se deixem convencer, habituados como estão a não obedecer aos pais, nem aos professores. Os meninos só sabem fazer o que lhes apetece e não recebem ordens de ninguém. Que fazer então?!

Introduza-se aqui um conceito que não é muito conhecido: responsabilidade. Alguém dizia que, à entrada de Nova Iorque, para além da estátua da liberdade, devia existir também uma estátua da responsabilidade.

A etimologia deste termo é muito elucidativa: a palavra ‘responsabilidade’ resulta da soma de dois étimos latinos: ‘res’ e ‘pondus’. O primeiro quer dizer ‘coisa’, daí que os direitos reais sejam os direitos sobre as coisas. ‘Pondus’, por sua vez, significa ‘peso’. Conclusão: a responsabilidade é, literalmente, ‘o peso da coisa’. Quem toma uma decisão, tem de acarretar com as suas consequências: ninguém pode casar e continuar solteiro, nem não casar e pretender o que é próprio do estado matrimonial, muito embora muitos solteiros vivam como se fossem casados, e muitos casados como se fossem solteiros…

Portanto, o Chico-esperto quer fazer uma festa com os seus amigos, não é? E não aceita a recomendação das autoridades públicas sanitárias, pois não?! Muito bem, então deve-se tomar conta da ocorrência, para memória futura. Que quer isto dizer? Pois bem, como as instituições sanitárias, em situações de crise, têm que estabelecer prioridades, deveriam preterir as pessoas que têm comportamentos antissociais, em benefício das pessoas que, sem culpa própria, precisam de apoio médico.

Não se trata, como é óbvio, de negar cuidados médicos a ninguém, nem muito menos de ser vingativo, mas exigir responsabilidade: o Estado não deve cuidar de quem não se cuida, nem cuida dos outros, pelo menos enquanto não o tiver feito a quem precisa de cuidados sanitários. Até porque deve respeitar a liberdade dos cidadãos: se o Chico-esperto, seja ele menino ou menina, acha que não precisa de acatar as recomendações que visam a saúde pública, é porque está, de algum modo, a renunciar aos serviços sanitários. Não faria sentido que se privasse algum doente involuntário dos meios humanos ou técnicos de que carece, para beneficiar quem despreza a saúde pública.

Alguns comportamentos irresponsáveis não devem levar ao exagero de pensar, ou afirmar, que todos os norte-americanos, ou portugueses, são imprudentes. Pelo contrário: muitos dos nossos compatriotas, não só obedecendo ao Estado mas também à Igreja, têm dado exemplo de solidariedade social e de civismo, abstendo-se dos contactos sociais não imprescindíveis. Mas falta, na nossa cultura cívica, mais sentido de responsabilidade pela ‘res publica’, ou seja, pela coisa pública.

Num país escandinavo, por exemplo, o que é público é de todos; em Portugal, o que é público não é de ninguém. No norte da Europa, cada morador tem a obrigação de retirar a neve que se deposita à frente da sua casa; em Portugal, há quem deite papéis, ou beatas, para a rua. Confesso que, quando vejo as carruagens dos nossos comboios grafitadas, sinto vergonha alheia: não percebo a irresponsabilidade dos ‘artistas’, nem a sua impunidade, nem o desleixo de quem permite que o património público seja sistematicamente vandalizado. E deixa-me profundamente irritado ver alguém não deficiente estacionar, mesmo que seja por breves instantes, no espaço reservado a quem, tendo essa condição, tem essa necessidade e indiscutível direito.

Não é preciso, nem desejável, que o nosso país se converta numa espécie de Singapura, em que as normas de conduta social chegam a ser asfixiantes, mas seria bom que todos fossemos um pouco menos individualistas e um pouco mais responsáveis, sobretudo em relação ao que é público, porque é nosso, ou seja, de todos nós.

Já que somos um país abençoado por Deus com tantas maravilhas naturais – o clima, as praias, as serras, o céu, etc. – e tantas riquezas humanas – a unidade e história nacional, a cultura cristã, a língua comum aos países que demos ao mundo, a nossa hospitalidade e natural disposição para ajudar o próximo, etc. – aproveitemos esta pandemia, que é, sobretudo, uma crise humanitária, para sermos também um pouco melhores, sendo menos egoístas e mais solidários.