Para quem admira os Estados Unidos, é penoso assistir à campanha eleitoral. De um lado um charlatão, sem princípios, que transforma os seus discursos em encontros de igrejas evangélicas. A transformação do partido republicano numa espécie de seita religiosa é arrepiante.

Mas eu não sou daqueles que acha que vale quase tudo para derrotar Trump (ou outros candidatos populistas), e que fica cego perante comportamentos que degradam a democracia, venham de onde vierem. A transformação da vida política num combate entre “partidos democratas” e “partidos anti-democráticos” está a ser usado para diminuir a qualidade da democracia e transformar o regime democrático numa mera luta pelo poder. Foi isso que o partido Democrático fez nos Estados Unidos em nome do combate contra Trump.

Vale a pena começar pelos factos. Em Março deste ano, mais de 15 milhões de membros do partido Democrático (cerca de 87%) votou em Biden para ser o candidato do partido às presidenciais. Quatro meses depois, as figuras máximas do partido, a começar por Barak Obama e Nancy Pelosi, lideraram um golpe de estado contra Biden. Não há outro nome para afastar um candidato eleito democraticamente, apesar da encenação do “acto patriótico” de Biden. Só há uma palavra para definir o que se passou no partido Democrático, e é mesmo melhor escrever no original: disgusting.

Há duas ou três perguntas que se devem colocar. Havia sinais de uma degradação física e até mental da saúde de Biden bem antes de Março deste ano, pelo menos durante todo o ano passado. Sendo assim, por que razão Biden foi escolhido em Março? Tendo em conta o que se passou na última semana, o que faria sentido teria sido a candidatura de Kamala Harris logo no início do ano. Mas isso não aconteceu. Não aconteceu, porque simplesmente os democratas não acreditavam que Kamala fosse uma candidata forte. Continuava como candidata a Vice-Presidente por causa dos votos das mulheres e dos afro-americanos. Se Kamala fosse a candidata óbvia com possibilidades fortes de ganhar, o partido teria votado nela e Biden nem sequer se teria recandidatado.

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O pânico que se instalou no partido Democrático com a possibilidade da vitória de Trump levou à segunda encenação, que nos quer fazer acreditar agora que Kamala Harris é uma óptima candidata. De repente, toda a gente a elogia, como se fosse uma réplica feminina de Obama. Mas não é, como os democratas sabem muito bem. Até pode vencer as eleições, dada a elevada rejeição de Trump, mas não é uma boa candidata. E dificilmente será uma boa Presidente.

Há mais uma questão relevante: o que aconteceu a Biden em quatro meses que levou ao golpe de estado dentro do partido contra ele? Há duas respostas possíveis, e ambas más. O partido conhecia a condição de saúde de Biden em Março mas mesmo assim os seus militantes consideravam que era quem tinha mais hipóteses de derrotar Trump. Se assim foi, os democratas enganaram os americanos em Março. Mas também significa que valorizavam mais um Biden diminuído do que Kamala.

Mas há uma segunda resposta possível. Em Março, Biden estava em condições de concorrer à Presidência, mas a sua saúde piorou consideravelmente nos últimos quatro meses, tornando-o incapaz de exercer as funções de Presidente. Se assim foi, Biden deve demitir-se da presidência. Obviamente que não o fará, e a sua declaração de renúncia à candidatura não evocou razões de saúde, o que deveria ter feito. Ou seja, os democratas mentiram aos americanos. Mentiram há quatro meses, ou estão a mentir agora.

Sabem quais são os argumentos dos democratas. Podia-se ter feito as coisas melhores e de uma maneira diferente. Biden não devia ter sido candidato. Cometeram-se erros e não se disse toda a verdade aos americanos. Mas isso agora não interessa. O que interessa é ajudar Kamala a ser eleita e impedir a vitória de Trump. É com esta atitude que se estraga a democracia e se ajuda o crescimento dos populistas. É trágico que aqueles que evocam a defesa da democracia mostrem pouco ou nenhum respeito pela dignidade democrática.

PS: Uma palavra final de elogio para Biden. Foi Presidente em tempos muito difíceis, mas esteve certo nas questões essenciais de política externa: na guerra na Ucrânia, na relação com a China e no apoio a Israel após os ataques terroristas do Hamas. Não se pode pedir muito mais. Tenho pena que saia desta maneira.