Enquanto Putin invade a Ucrânia para alterar fronteiras terrestres, somos inconscientemente subjugados pela expansão da fronteira de possibilidades estabelecida pelas próprias tecnologias. Percebemos estar reféns de sofisticadas armas nucleares, mas temos a ilusão, por exemplo, de que a desinformação só afeta os russos. Contudo, as tecnologias da guerra não descansam nem em tempo de paz, servindo incessantemente a ganância e o poder.
A Leste e a Oeste, vira o disco e toca a mesma natureza humana. Por cá, ainda não ouvimos o rufar dos tambores porque a democracia é o pior dos regimes à exceção de todos os outros. No entanto, para que a ironia de Churchill não passe disso mesmo, urge perceber que chegou a idade da reforma política da sociedade; uma regeneração transparente, de pendor tecnológico, que permita a emancipação individual e a moralização da ação coletiva.
Claro que as tecnologias são destituídas de moral e não podemos esperar que sejam justas, éticas ou decentes. Elas só podem ser classificadas quanto à respetiva eficácia, já que a moralidade é um atributo humano. Ora, como as tecnologias atingiram uma eficácia extraordinária e a virtude moral está individualmente distribuída de forma irregular, estamos nas mãos de uma roleta russa amoral que só pode ser travada por uma tecnologia ainda mais extraordinária. Afinal, a tecnologia vence sempre.
Numa época em que a energia atómica disponível é altamente eficaz (para o bem e para o mal), o processamento de dados também se tornou incrivelmente poderoso. Na verdade, átomos e bits têm hoje um poder de magnitude comparável, sendo as tecnologias de informação tão decisivas para a humanidade como a tecnologia nuclear. Por isso, não espanta que os mísseis balísticos e a desinformação sejam os maiores trunfos de Putin.
O marketing é uma tecnologia eficaz. No entanto, o mérito do seu resultado não depende dessa eficácia. Na pandemia e na guerra, tal avaliação prende-se, sim, com o efeito terapêutico dos medicamentos prescritos e o interesse público das políticas implementadas. Por outras palavras, o valor acrescentado pelo marketing depende sempre do objetivo da persuasão, sendo a respetiva eficácia eticamente neutra. Afinal, o marketing enganoso também pode ser eficaz. Por exemplo, enquanto a eficácia do marketing farmacêutico protege a saúde pública no caso das vacinas, o sucesso do marketing político enganoso do Kremlin surte um efeito diametralmente oposto.
Na verdade, a eficácia tecnológica manifesta-se à revelia de quaisquer juízos morais. Por isso, não adianta apontar o dedo às tecnologias que viabilizam “fake news” e mísseis nucleares. O importante mesmo é travar politicamente a roleta russa amoral a que estamos sujeitos por causa da eficácia tecnológica.
Insisto neste ponto da neutralidade moral das tecnologias porque há preconceitos que só servem para atrapalhar e condenam a humanidade a infortúnios escusados. Por exemplo, fala-se em energia nuclear ou bitcoins e logo surgem tais preconceitos. Como se pudéssemos realisticamente contar com energias menos poluentes e dinheiro mais confiável.
Infelizmente, no preciso momento histórico em que precisamos da maior clarividência política para manter a liberdade e enfrentar a crescente ameaça à sobrevivência da humanidade, os dirigentes políticos fazem um silêncio ensurdecedor perante a primeira tecnologia que serve a descentralização do poder. Mais: tal silêncio só é quebrado pela desinformação que visa esbater os indícios financeiros da nova realidade e proteger o status quo. Isso é lamentável, pois o fruto de tão ruinosa ignorância (ou de outras razões não razoáveis) será provavelmente catastrófico.
Se os sistemas monetários e a comunicação social continuarem a ser centralizados, geridos por grupos restritos de indivíduos ou até por autocratas, assistiremos, impotentes, à utilização discricionária de tecnologias demasiado poderosas para dispensarem escrutínios éticos realizados pelas próprias comunidades.
Não se pense que a tradicional separação de poderes dos regimes democráticos será imune à eficácia das recentes tecnologias de transação digital (tecnologia blockchain coadjuvada por inteligência artificial). Caso não apontemos estas novas tecnologias à descentralização, nomeadamente, substituindo a irregular distribuição moral individual pela mais homogénea ética comunitária, todos sucumbiremos ao desígnio da eficaz roleta russa tecnológica.
As tecnologias apenas podem ser ultrapassadas por outras tecnologias. Não há outra forma de seguir em frente. A tecnologia convencional do dinheiro, baseada no débito, falhou na crise de 2008 e voltará a falhar. Como a necessidade aguça o engenho, foi criado, nessa altura, um sistema monetário digital alternativo designado Bitcoin. Hoje percebe-se que a eficácia dessa inovação tecnológica estende-se para além da área financeira, abrindo avenidas para a expedita descentralização das decisões políticas.
O facto é que passou a ser possível os indivíduos coordenarem as respetivas transações sem terem de confiar uns nos outros ou sequer se conhecerem. A tecnologia em questão foi inventada a pensar na descentralização do dinheiro, mas os cidadãos precisam dela a vários níveis. Na verdade, a causa pública não pode dar-se ao luxo de dispensar o novo tipo de confiança baseado em consensos alargados só possíveis de instituir em redes blockchain de código aberto.
Estamos a falar da automatização da confiança e da transparência na vida comunitária, através da desintermediação das transações digitais na sociedade, por exemplo, mediante a celebração de contratos autoexecutáveis, o que passou a ser possível graças à emergência de novas garantias associadas ao rigor matemático e à validação criptográfica de consensos obtidos em redes blockchain.
As implicações político-económicas da tecnologia blockchain são tremendas, quer para o bem quer para o mal, pois, como vimos, as tecnologias são amorais e a evolução tecnológica não se compadece com o destino das pessoas, pelo que terão de ser elas a tratar de si próprias. Como o desfecho político desta mudança não é inevitável, estamos num marco histórico e filosófico. Chegada a idade da reforma política da sociedade, há que estudar, refletir e não desperdiçar a oportunidade de transitar para um novo paradigma ético, político e financeiro.