A ideologia de género tem a seu favor o facto de ser absurda. Uma ideia ser absurda parece tão, tão absurdo, que facilmente acreditamos que quem está errado somos nós, não a ideia. O absurdo beneficia, por isso, de uma benesse negada ao óbvio, e que nos assombra desde que um conjunto de equações num quadro explicou os eclipses e pôs o homem na lua: a admiração pelo incompreensível, esse incenso que ofertamos a quem nos diz ver melhor que os nossos olhos.

Tramou-nos isso e outra coisa. A ideia de que as ideias são inofensivas, a qual, para além de ser uma ideia, portanto perigosa por natureza, é perigosa por experiência. Espreguiça-nos a vontade e relaxa-nos o intelecto, refastelados na certeza de que pensar é só pensar e ninguém se magoa. É uma espécie de dualismo gnóstico, uma dessas tentações que, derrotadas numa geração, logo aparecem na seguinte com um nome diferente. Uma certa visão da relação entre a matéria e o espírito, o corpo e a mente, segundo a qual estes são não só distintos, mas separáveis, ao ponto de uma pessoa, uma comunidade inteira, poder acreditar numa coisa e viver como se não acreditasse. Esta ideia explicará que uma sociedade como a nossa, assente em milénios de religião cristã e de (alguma) filosofia sã, não tenha antecipado a derrocada do consenso que murava a natureza do homem e da mulher.

Não é que não se soubesse já. Quem estava atento sabia que uma coisa chamada “Teoria de Género” possuía a Academia, como um espírito mau, levando-a a desconfiar da biologia e, nesta, dos seus próprios olhos. Sabia-se também que a desconfiança lançava raízes profundas, puxando de uma filosofia descrente da possibilidade de conhecer a realidade, da possibilidade de usar os olhos como olhos e não como lentes. Mas havendo quem soubesse, poucos temiam. Anestesiou-nos a ideia de que, apesar de tudo, eram só ideias. E quando estas nos bateram à porta das casas e das escolas, lembrámo-nos daquela verdade velhinha. A de que uma ideia, como o azeite em água, não deixa de vir à tona.

Voltando à ideologia. Que bicho é? Não é a defesa da igual dignidade entre o homem e a mulher, nem uma forma de combate à discriminação. Longe disso. Não é também, ainda que pareça, o viveiro dos pesadelos de um certo reacionarismo que despeja no termo as alergias que tem à modernidade, do inverno demográfico ao facto das mulheres usarem calças. Não é isso: é uma coisa, com um conteúdo. Poderia dizer-se que é a proposta da existência do “género”, o objecto de uma identificação mental com os conceitos “homem”, “mulher” ou algo pelo meio, sem vínculo ao sexo. As possibilidades de identificação seriam infinitas. Fala-se em “espectro”, que se jura não ser fantasma.

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Mas não pode ser só isso. Se fosse, a ideia ficaria pelo óbvio (e o óbvio, como já vimos, não convence). Realmente, desde que há registo, sempre houve quem se identificasse com outra coisa. A medicina chamou-lhe “transexualismo”, depois “disforia de género”. Que essa identificação possa existir não é então o que distingue. O que será único é a ideia de que a identificação é o identificado. Ou seja, a ideia de que um homem que se identifica como mulher não é um homem que se identifica como mulher, é uma mulher. No mais da vida, diz-nos a sanidade que não basta achar que se é para se ser. Para o “género”, abre-se uma excepção. É passar a identificação de lateral para central, de acidente para substância, de distúrbio a tratar para identidade a celebrar, que está no coração desta ideia.

Daqui brotam mil contradições para os activistas. Ficam algumas. Por um lado, o género é apenas uma construção, social ou mental, e, por outro, uma pessoa pode estar “presa” no género errado. Dizem que não há diferenças significativas entre o homem e a mulher, mas usam estereótipos sexuais rígidos para basear a “identidade de género”. Dizem que a verdade é o que o sujeito diz que é e, ao mesmo tempo, acreditam que existe um “eu” de verdadeiro género por descobrir, que o sujeito recebe, sem criar. Se o género é uma construção, como pode a identidade de género ser inata e imutável? E se a identidade de género é inata e imutável, como pode ser “fluída”?

Os intérpretes de boa vontade tentam encontrar coerência na coisa, a chave que harmonize. Há quem diga que, bem lá em baixo, a Teoria de Género é uma rejeição da metafísica, e há quem diga que é antes uma nova metafísica. Há quem lá veja um subjectivismo radical e há quem lhe aponte um novo objectivismo, que eleva os estados mentais ao estatuto das pedras e árvores e demais coisas que nos entram pelos olhos adentro. Acontece que a tentativa de encontrar o postulado sobre o qual assenta a ideologia e que a torna clara, coerente ao menos, ignora que a clareza, a coerência, não são o ponto.

Como em tudo, conhecer os pais ajuda. A filiação imediata – e acertada – da ideologia é com o pós-modernismo, em particular com Michel Foucault e a canónica Histoire de la Sexualité e, mais recentemente, com Judith Butler e sua Theory of Gender Performativity. Deste lado vem a tese de que tudo, incluindo isto a que chamamos “homem” e “mulher”, é determinado pela linguagem e pelo poder.

Há outro ancestral, menos evidente mas talvez mais determinante. Filha fiel da Teoria Crítica (Horkheimer, Adorno, Marcuse e outros), a Teoria de Género bebe-lhe a ideia de que não é procurando conhecer a realidade, ou soluções para os seus males, que se deve pensar. Se o objectivo fosse conhecer ou melhorar, haveria coerência, não contradição no mínimo. Mas o programa é outro. A premissa é a de que toda a realidade é negativa, carregando mancha indelével da opressão. O ponto de partida não é, por isso, o espanto dos antigos, a revelação dos escolásticos, nem sequer (é um erro comum) o desejo utópico dos modernos. Não é o fascínio por esta realidade, já nem a espera utópica por uma outra: o que os anima mesmo é a total rejeição de tudo (ou, como lhe chamou Marcuse, The Great Refusal ou the protest against that which is). O “pecado original” da realidade é de tal ordem que tudo o que esta inclui, a cultura, a língua, a lógica, a natureza humana, tudo deve ser desmontado. A esperança é a de que, das cinzas da devastação, nasça algo melhor. Mas o objectivo imediato é a desconstrução, não a solução. O programa, na verdade, é não ter programa. É assim como quando os meninos pequeninos, embirrentos, tiram os brinquedos dos outros meninos só para estes não brincarem. É tirar por tirar, destruir por destruir. É a Grande Birra com a realidade.

Nisto, a Teoria de Género obedece à Teoria Crítica. Mas como sua variação específica, que acrescenta? Se a tese é a substancialidade do género, o alvo seria o sexo. Mas não é. O verdadeiro alvo não é (só) a afirmação de que se nasce homem ou mulher. Essa distinção, ainda que negada, é pressuposta. Nenhum homem quereria ser mulher se não reconhecesse que nasceu homem. Tão pouco, para o conseguir, faria tanto para parecer mulher se não tivesse uma imagem clara do que é ser mulher.

O nó dá-se antes no embate entre o que uma pessoa quer ser, e o que todas as outras conseguem ver. O ponto não é a negação da distinção entre homem e mulher, mas sim o desejo de vergar a percepção humana. De levar cada pessoa a dizer que vê o que não vê, que acha ser o que sabe não ser. É que se basta dizer-se mulher para o ser, a percepção imediata passa a obedecer a um fiat de fora. Invertida por sufoco social, já não vai do objecto para chegar ao nome, mas vai do nome para ofuscar o objecto. E para quê? Para que todos, uma cedência de cada vez, nos habituemos a negar o que vemos.

Porque o objectivo é esse e não o de oferecer uma metafísica alternativa, os activistas maquilham a sua antropologia com uma boa dose de “medicinez”. Parecem saber que, se a discussão fosse travada onde deve – no plano filosófico -, as contradições logo apareceriam. Para tal cooptaram, com uma eficácia arrepiante, grande parte das instituições “respeitáveis”, que agora enterram as suas preferências ideológicas sob frases e frases de lero-lero pseudo-científico. Um exemplo recente veio da Associação Americana de Psicólogos, que decretou que a “masculidade tradicional é danosa”. Segundo consta, a sentença foi encontrada do outro lado de um microscópio.

E o mal de tudo isto? Crianças angustiadas. Taxas de suicídio alarmantes entre as pessoas que se identificam como “transgénero” – as verdadeiras vítimas. Os dados médicos sugerem que a dita “mudança de sexo”, química ou cirúrgica, não ajuda. Mesmo quando as operações são cosmeticamente “bem-sucedidas”, e mesmo em culturas favoráveis à sua opção, os problemas destas crianças mantêm- se. O estudo mais rigoroso que temos do fenómeno, realizado na Suécia durante trinta anos, documenta que a aflição mental das vítimas dura toda a vida. Dez a quinze anos depois da cirurgia, a sua taxa de suicídio é vinte vezes superior à dos seus pares.

E se as crianças “transgénero” são quem mais sofre, as outras também pagam. Em Portugal, quer o Ministério da Educação que as crianças, desde o pré-escolar, duvidem da biologia, desconstruam “estereótipos de género” e descubram a sua “identidade de género”. Está tudo online. Veja-se: isto significa que hoje, em Portugal, desde os três anos, os meninos são levados a duvidar de que são meninos e as meninas a duvidar de que são meninas. Estes são os frutos da ideologia. Que as birras das crianças chateiem os adultos, é normal. Que as birras dos adultos magoem as crianças, é muito, muito mau sinal.