O Partido Comunista, que nos jura combater o branqueamento da ideologia alheia, saiu do centenário enterrado em pó de arroz. Nós, penhorados, agradecemos. Suspirámos um “obrigado” rouco de emoção e hasteámos muitas, mas muitas bandeirinhas. Vimo-las na semana passada, por ocasião da festa de anos. Constatámos, como quem constata mais um sinal no braço, que as nossas metrópoles juntaram as mãos ao aplauso, e que os municípios emprestaram os pulmões para soprar as velas do bolo. Até a geografia se transfigurou, jubilosa da efeméride. Pensou-se (suponho) na Praça do Comércio virada Praça Vermelha, mas a ironia conceptual foi demasiada. Estranhamente, não impediu que se fizesse a Avenida da Liberdade desaguar em Leninegrado. A Rússia descer ao Rossio. Tudo muito lindo.

O fenómeno foi avistado por esse Portugal fora, na verdade. No Porto e em Coimbra também. Na capital, fora o que já se registou, ainda esperei (sentado, nas bordas da rotunda) que a estátua do Marquês de Pombal se trocasse pela dum Marquês de Cunhal ou coisa parecida,  num casamento feliz entre o ímpeto iconoclasta da nova esquerda e a celebração da anterior. Não aconteceu. Restaram as bandeirinhas, a ondular.

Curiosamente, numa época em que usar cores em metáforas glorifica o racismo, colorir as ruas de vermelho tingido de foice e martelo não soou a Estalinismo. É natural, tem que ver com a nossa relação com o menino dos anos. O português médio, democrata por reflexo, burguês por fatalidade e próspero por ocasional pingar da torneira que dá pelo nome de autoridade, só às vezes tropeça no PC. Sorri-lhe, num misto de afeição e enfado, e consente-lhe uma ou outra bizarria. Consente-a como quem consente a um tio-avô, assim muito antigo e adiado, que se faça lembrar em comentários ou mentalidades de um tempo que, sempre que aparece, parece bater com a cabeça no teto do caixão.

O português médio sabe pouco dele, como geralmente sabe pouco de quem escapa ao leque de parentesco composto por, a saber: irmãos, pais, avós e animal de companhia. Sabe dele só o que dele resta, normalmente uma versão rezingona e acabadinha, um tanto ou quanto encantadora, de quem já não é bem o mesmo. Ou de quem, tentando reciclar o vigor do que foi, torna o horror do que chegou a ser numa sequela engraçada. E, no que interessa, inofensiva. É a lógica do jardim zoológico: quanto mais feroz a fera, se enjaulada, mais fascinante o rosnar. Porque a crueldade, na velhice ou noutra forma de contenção, costuma parir aquela excentricidade impertinente que nos faz as delícias. É simples, toda a gente percebe. O coitadinho não sabe o que diz. Do coitadinho nem se sabe o que fez.

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Falha a analogia quando nos lembramos que o PC não é uma pessoa, mas um partido. Não se faz caso, ainda assim. Interessa pouco que se inscreva numa ideologia que, com a mira apontada à Utopia, atravessou tudo o que se meteu no meio. Fê-lo a preço de mais de 100 milhões de vítimas, cujas vidas, não fosse oca a simbologia da foice, foi ceifando da Coreia a Cuba. Interessa pouco que a inscrição deste nosso PC seja feita com traço vincado e sublinhado, com intenção e militância. Interessa pouco que essa militância não seja envergonhada, mas declarada com acenos públicos aos regimes – ou ditas “diferentes” formas de democracia – das tais Coreia e Cuba. E que se celebre a União Soviética. E Lenine. E Estaline. E a China de Mao Tse-Tung (em “Mao”, leia-se “Bom”). E o próprio Mao (lembro – “Bom”). E a Venezuela de Chávez. E (o que resta da) Venezuela de Maduro. E assim em diante.

Interessa igualmente pouco que essa militância não seja só uma de acenos e elogios. Que não seja só daquela que costuma pontilhar a fauna das faculdades de ciências sociais com uma ou duas t-shirts do “Che” ou um igual número de tambores. Interessa pouco que, não satisfeito com a vénia verbal, o PC nos tenha vindo esgravatinhar o quintal. Que tenha presidido, durante o PREC, a “centenas de prisões arbitrárias”, (umas quantas) “mortes”, “tortura sistemática”, “castigos corporais”, “coação psicológica”, “enxovalhos”, “humilhações” e mimos que tais. Assim nos recorda o Relatório das Sevícias, cuja gaveta só agora se abriu, para maçada do regime. E tudo isto, lembre-se, apenas como aperitivo, como suave prelúdio do que viria, não fosse a batuta do poder fugir-lhe das mãos escassos 19 meses depois de a assaltar. Interessou pouco. 100 anos volvidos, continua sem interessar.

E a opinião pública nisto tudo? Que foi feito dos jornalistas, cronistas, comentadores, fact-checkers e demais artigos do catálogo de opinion-makers que sempre nos levam pela mão, com uma candeia na outra, a iluminar a actualidade e a fazer “bu!” aos populismos? Fora um ou outro, o balanço foi positivo. Portaram-se bem, apanharam a dica e seguiram a toada do costume, multiplicando-se em tributos e meiguices. Mas nem se estranhe: foi uma pincelada bem alinhada no quadro geral. É que é dogma secular que o PC é um dos responsáveis pela nossa democracia. Na televisão ouve-se mesmo, com solenidade: “É o Pai da Democracia”. Convém (con)decorar-se isto e repeti-lo até à exaustão. E faz sentido. Mais não é do que uma obediência à tradição de maquilhar o morto quando se vela o caixão, para edificação geral.

Entretanto, é imperativo que se continue a içar bandeirinhas e a entoar cantigas de intervenção. Não vá o cidadão incauto descobrir, numa respiração entre Grândolas, que o PC só combateu a ditadura que se lhe opunha, para instaurar a ditadura que lhe convinha. E que, não fora um sobressalto no dia 25 de Novembro de 1975, talvez a tivesse instaurado. Bem vistas as coisas, atribuir ao PC a conquista da democracia é como atribuir a um bombista o combate ao terrorismo, por rebentação acidental dum cúmplice. Mesmo que ele, ainda quente da dinamite, não recuse um aplauso distraído, só a custo contém a lágrima.