A expressão de Camilo Castelo Branco nunca foi tão actual: as “imbecilidades morais” à moda de Famalicão estão mesmo a fazer escola e somos agora, como diria um outro escritor contemporâneo de Camilo, “a inveja da Europa”. Ou voltámos a ser, num tempo em que a própria Europa parece limitar-se a fazer uma cópia servil do nosso provinciano pioneirismo, tentando encandear o mundo com as “luzes do Progresso”, resolução a resolução, recomendação a recomendação, exortação a exortação.

“Caso ainda não tenham reparado, os Estados Unidos da América já não são uma colónia europeia”, lembrou aos seus colegas do Parlamento Europeu a eurodeputada alemã Christine Andersen, no debate do dia 7 de Julho. Não era para menos: os parlamentares de Estrasburgo preparavam-se para aprovar uma moção que condenava a decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos de revogar a lei federal do aborto; revogação, nunca é demais lembrá-lo, que não “proíbe o aborto”, mas que se limita a devolver às assembleias legislativas dos 50 Estados da União o poder de decisão sobre a matéria.

À conquista do faroeste 

Não era a primeira vez que os representantes dos eleitores europeus se arrogavam o papel de arautos da nova moral: no dia 7 de Novembro de 2021, o Parlamento de Estrasburgo tinha já aprovado uma moção a pedir a rápida anulação das medidas restritivas ao aborto no Estado americano do Texas:

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“O governo do Estado norte-americano do Texas deve proceder rapidamente à revogação da Lei 8 do Senado e garantir livre e seguro acesso à prestação de serviços de aborto”.

Esta resolução fora então aprovada por 381 votos a favor, 253 contra e 36 abstenções e “exortava” ainda o governo americano a cumprir uma extensa lista de providências, “instando-o”, por exemplo, a “regulamentar a recusa, pelos prestadores de cuidados de saúde, da prestação de serviços de aborto legais, incluindo com base numa cláusula de ‘consciência’”.

Não é de estranhar. O farol do progresso tem de estar bem acesso e não pode compadecer-se com consciências nem conhecer fronteiras; e o facto de, por enquanto, o Parlamento Europeu não ter poder sobre os Estados membros, ou de só ter sobre os seus associados um poder subsidiário, não o pode nem deve impedir de partir à conquista do faroeste.

É uma questão de fé, de princípio e de entretenimento, que nos transporta, numa romagem de saudade, até às resoluções com caracter urgente das assembleias estudantis da Faculdade de Direito dos anos 60, ou às das mais ampliadas Reuniões Interassociações (RIA), que se desdobravam em recomendações e decisões sobre a Guerra Fria, a guerra do Vietname ou o Brasil dos militares. As moções podiam não servir de muito, mas os activistas de então ficavam contentes. E nós, os poucos opositores que por ali andávamos, sempre podíamos votar contra – o que também nos divertia e alegrava.

A coligação que decidiu pregar os novos direitos humanos ao Supremo Tribunal de Justiça norte-americano – depois de ter apelado aos Estados membros da União Europeia que incluíssem o direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da Europa – vai das extremas-esquerdas, acolitadas pelos inevitáveis liberais em todas as coisas, a todos os que, desde os alvores da humanidade, não gostam de ficar para trás nestas coisas do progresso.

Até agora, não consta que os norte-americanos se tenham queixado da ingerência de Estrasburgo ou que tenham sequer reparado nela, mas, ainda assim, os deputados europeus não quiseram deixar de votar contra a decisão do Supremo americano, num acesso de zelo pós-colonial ou num assomo de solidariedade para com os pró-abortistas em luta no ultramar americano. Luta essa que não se limitava à monitorização e intimidação dos juízes do Supremo e ao ataque a igrejas católicas mas que incluía a organização de um “mega festival” de Verão: o “Summer of Rage 2022”.

Entretanto, as coisas tenderão a normalizar-se, Estado a Estado, e os cidadãos americanos portadores de nascituros indesejados que quiserem exercer mais tardiamente o direito à interrupção voluntária da vida alheia poderão fazê-lo, deslocando-se para Estados da União onde o prazo para o exercício do direito à privacidade seja mais alargado. Para tal não lhes irão faltar subsídios das empresas e dos generosos lobbies que, por todo o mundo, costumam subsidiar estas “boas causas”.

De qualquer forma, entre o discurso de ódio contra os juízes do Supremo Tribunal e o fervor pseudo-legislativo dos eurodeputados de Estrasburgo, o “Summer of Rage 2022” promete. De resto, os radicais das novas esquerdas e os seus companheiros de luta liberal-chic  e radical-chic – que não se conformam com o facto de não poderem impor ao resto do globo as suas fluídas mas absolutas certezas sobre o mundo e o género humano – já há muito que ansiavam por um festival de Verão, por um campo de férias onde os activistas de todo o mundo pudessem encontrar-se em franco e inclusivo convívio e na caça ao fóbico e ao anti-abortista.

A Vida e a Morte no Ocidente

Sempre assim foi. Basta olhar para a história da Vida e da Morte no Ocidente. O facto de o Juramento de Hipócrates, pioneiro dos códigos éticos, ser claríssimo na proibição da eutanásia e do aborto, nunca intimidou os que do passado queriam fazer tábua rasa:

“Juro por Apolo, o Médico, e Esculápio […] que não darei nenhum medicamento mortal a ninguém, nem sugerirei ou aconselharei tal; e do mesmo modo não darei a uma mulher um pessário para fazer aborto.”

O texto é, evidentemente, primitivo: data de 400 A.C., sendo que Hipócrates terá vivido entre 450 e 380 A.C. Já Aristóteles, na Política (Livro VII), mostra alguma abertura, quer em relação à eugenia, quer em relação ao aborto, como formas de controlo de natalidade.

No mundo antigo, pagão, pré-cristão, o aborto era visto em termos pragmáticos, de razão política, e ponderado de uma perspectiva demográfica, de controlo da população. Assim, tal como Aristóteles defendia em Atenas a eugenia e a limitação da natalidade, em Roma, na crise da República, Júlio César e Octávio César Augusto, confrontados um déficit de nascimentos, lançavam políticas pró-família, como a Lex Papia Poppaea, que estimulava a natalidade mediante um alívio fiscal concedido aos homens casados e com filhos. Homens casados e pais de filhos que Augusto louvava “por ajudarem a repovoar a pátria”, enquanto fazia o elogio das mães de família “castas, domésticas, boas donas de casa, cuidadoras dos filhos”. Os tempos eram de nítida opressão patriarcal.

Mas a sobrepopulação não era apenas uma preocupação aristotélica: segundo o Exodus (Ex,1: 22), um Faraó do Egipto mandara matar os filhos machos dos escravos judeus que se estavam a reproduzir a um ritmo alucinante. Moisés escapou e, a partir daí, como nos mostra Cecil B. de Mille, muita coisa aconteceria ao povo de Israel.

A lei mosaica viria punir o aborto, dizendo que a mulher que o praticava era “uma assassina do seu filho, ao destruir um ser vivo e ao diminuir assim a Humanidade”. Os judeus acusavam os pagãos de abortistas e infanticidas, há textos do Deuteronómio contra os pagãos “que até queimavam os filhos e as filhas no fogo dos sacrifícios”, e a Didache, um pequeno manual de preceitos dos primeiros cristãos, proibia que se matasse “uma criança por aborto ou já quando nascida”.

Depois, no final do Império Romano, na decadência do Império do Ocidente, relatos como os de Amiano Marcelino, nas Res Gestae, sublinhariam o contraste entre os antigos costumes republicanos – os mores maiorum – e os hábitos das novas elites. As novas elites erguiam estátuas a si mesmas, passeavam em grandes carros, usavam roupas esfarrapadas ou mesmo rotas de aspecto plebeu, mas de um chique radical extremamente dispendioso. E gastavam avultadas quantias em festas, banquetes e festivais.

Outro sinal de fim civilizacional era a redução do número de filhos, o controle da natalidade fora de qualquer ponderação demográfica. Soranus de Éfeso escreveu em grego um Tratado, Ginecologia,em que, ainda assim, distinguia as práticas contraceptivas e as prácticas abortivas, aceitando as primeiras e condenando as últimas, sobretudo se não fossem “naturais” ou seja, se ultrapassassem o primeiro mês de gestação.

A demografia da decadência

Foi Pierre Chaunu, historiador da chamada “História quantitativa” e especialista em questões de população, que, na volta dos anos 70, chamou a atenção para o “suicídio demográfico” do Ocidente, com a Euroamérica então obcecada com “um mundo cheio” e o Clube de Roma a prever a extinção dos recursos. Chaunu, que se definia como um “anarquista de direita”, foi um dos profetas contemporâneos desta crise. Era um cristão convicto, protestante, republicano, patriota, que se dizia estupefacto com o que via como o suicídio demográfico da Europa e da América – nas associações americanas de no-parents, na esterilização voluntária e no aborto, que considerava “o crime absoluto contra o homem-indivíduo”.

Perante a imbecilidade e o absurdo destas resoluções de um Parlamento Europeu fixado na imposição de um pensamento único baseado numa moral malthusiana e hedonista, numa moral de reacções epidémicas – e, neste caso, a todos os títulos, imoral –, percebemos que não andaremos longe dos indícios que sempre pronunciaram o declínio e a queda das civilizações.

 O presente absurdo começou quando os marxistas heterodoxos europeus se refugiaram nos Estados Unidos, onde foram fazendo escola. Ali, com a violência sectária e o moralismo puritano autóctones, à esquerda como à direita, foi-se apurando uma sanha de perfeição ideológica até à imposição de “legislação avançada”, ao policiamento da linguagem e ao auto-flagelamento revisionista da própria História.

Reféns de muitos lobbies, os deputados europeus aprovaram, rapidamente, uma exortação contra um órgão de soberania de um país estrangeiro – o Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, há, até agora, um grande silêncio sobre a absurda moção aprovada pelo Parlamento de Estrasburgo. Em contrapartida, a Comissão dos Episcopados Católicos da União Europeia veio lamentar a resolução de 7 de Julho, acusando o Parlamento de “deturpar a tragédia do aborto para as mães em dificuldades” para sustentar a proclamação do “direito ao aborto” como direito fundamental.

E a farsa absurda e trágica promete continuar, ditada pela febre de correcção ideológica e pela arrogância maniqueísta dos comissários das novas verdades absolutas, perante a indiferença de uma sociedade desmantelada, acrítica e, por isso, permeável à manipulação e à sedução por todas as imbecilidades – morais ou imorais.