1Quem como eu nasceu na década de 70 do século passado, nos últimos quase 50 anos já se fatigou (e inoculou) do vocábulo “crise”. Arrisco aqui a mencionar (e enumerar) algumas das consecutivas crises políticas nacionais – e respetivas ‘instabilidades governativas’ – do pós-25 de abril, crises que nos acompanham ciclicamente até ao momento presente, todavia, destaco particularmente, as diferentes crises económico-financeiras internacionais. Por exemplo, a crise resultante do embargo petrolífero e geradora do conflito israelo-árabe (1973-1974); a crise que levou à primeira visita do Fundo Monetário Internacional (FMI) a Portugal e a medidas drásticas de austeridade entre 1977 e 1978, incluindo limites quantitativos ao crédito, mas também a desvalorização do escudo para restaurar a competitividade da nossa economia e produtos. Não olvido a segunda intervenção do FMI, que regressou em 1983, por iniciativa do Governo do Bloco Central e conduziu o país a mais uma recessão fruto da (inconveniente) receita aplicada. Mais recentemente, a famosa crise do Subprime que teve origem nos EUA, no verão de 2007, originada por problemas nos empréstimos à habitação e que atingiu o seu ponto mais crítico em 2008, com a falência do Lehman Brothers – uma das principais instituições financeiras norte-americanas –, crise que se disseminou por várias instituições de crédito portuguesas (Bancos) e que fomos constrangidos a resgatar para prevenir a possibilidade de ocorrência de risco sistémico no sistema bancário. (Este é o mesmo sector que teve no ano passado [2022] lucros acima dos dois mil milhões de euros e que sobe consecutivamente as taxas de juro dos créditos dos seus clientes.) Seguiu-se, então, a dura crise financeira de 2010-2013, em que a desconfiança dos mercados (investidores) relativa às dívidas públicas soberanas se alastrou e o receio sobre a incapacidade de vários países conseguirem cumprir com os seus compromissos levou a uma nova intervenção externa, agora da célebre “troika”, que se fez acompanhar de “insensíveis e firmes” medidas que visavam corrigir os diferentes desequilíbrios económico-financeiros da nossa débil (e muito exposta) economia por forma a restabelecermos a capacidade de nos voltarmos a financiar nos mercados. Para o fim, mas bem mais perto de nós, está – e prossegue – a crise sanitária da Covid-19, provocada pelo novo e célebre vírus “SARS-CoV-2”, uma nova “pneumonia viral” que surgiu (enigmaticamente) na província de Wuhan, na República Popular da China, em finais de 2019, mas que rapidamente se espalhou por vários países da Ásia e depois pelos 5 continentes, colhendo mais de 26 mil mortos em território nacional e que sinaliza o começo de mais uma crise/recessão.

Paralelamente a todas estas “provações”, existiram e subsistem outras que convivem diariamente com todos aqueles que ainda habitam este país (e mundo) – e até aqueles que já o deixaram –, como as crises orçamentais, climáticas/ambientais, energéticas, na habitação, justiça, saúde, demográficas, sociais, de segurança, no desporto, na democracia…, mas evidencia-se uma que é talvez a razão/causa de todas as anteriormente referidas, a incessante crise moral. Neste contemporâneo mundo em que estamos todos deslumbrados, obcecados e entretidos com o prazer, com a velocidade e novidade tecnológica – mas também com o dinheiro e poder –, a (educação) moral já não é relevante.

2Em todos os momentos e em todas as sociedades existiram – e continuam a existir – comportamentos considerados bons e outros maus. É no seio da comunidade, na relação com o(s) outro(s) que revelamos a nossa moralidade, que ponderamos e decidimos conscientemente, que avaliamos como corretas ou incorretas atitudes e condutas, e que sentimos (ou não) a obrigação/dever de cumprir com as normas, prescrições e orientações instituídas. Somos seres morais na medida em que o nosso agir está comprometido com uma codificação de regras, leis, normas, valores e motivações que nos dizem o que é o Bem e como devemos segui-lo/praticá-lo. Porém, a realidade é que continuamos a errar (e muito), falhar, a cometer deslizes e injustiças. A este propósito, Emmanuel Levinas, filósofo francês do século XX, é muito claro na obra Totalidade e Infinito, quando declara que importa muitíssimo «não nos iludirmos com a moral», pois ela esbate na prova com o real, sobretudo quando vivemos num estado (e economia) de Guerra que “suspende a moral” – por agora, militarmente circunscrita à Ucrânia, mas com impacto económico global –, tal como a praxis política, que “se opõe à moral”.

Apadrinhando a opinião, a fantasia e a ilusão, vivemos hoje num paradigma social que concebe e alimenta uma civilização essencialmente hipócrita onde a Verdade e o Bem parecem já não ter lugar ou apreço. Dito por outras palavras, a mentira parece ser agora um ‘pilar’ moral da nossa época, na medida em que os cidadãos se desinteressam (e abdicaram) do próprio conceito de Verdade… e tudo graças há espantosa quantidade de mentiras utilizadas no dia a dia. De facto, na política, nos negócios, na área da justiça, na “fina” finança e não só, os mentirosos são hoje tão bem-sucedidos e admirados que parece até que a Verdade deixou de ter qualquer categoria/valor moral e epistemológico. Pior, atualmente – e segundo o filósofo americano, Harry G. Frankfurt – tanto a verdade como a mentira foram ultrapassadas por uma nova forma de discurso e de conhecimento: o bullshit, a treta, parvoíce, o disparate, a farsa, a artimanha, a arte de dizer tolices, mentiras, falsidades… porque é do interesse daquele que a exprime (e exclusivo benefício) desprezar os factos, mas sobretudo consolidar o seu estatuto/posição de poder e enfraquecer os adversários. Ora, para quem acompanha a nova novela da Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP (mas também poderia ser a ex-Comissão de inquérito sobre alegadas “obras inventadas” na Madeira), percebe que a verdade não passa por ali. O que importa aos vários protagonistas das audições públicas (sejam ministros ou ex-ministros, ex-secretários de Estado, chefes de gabinete, ex-adjuntos, a ex-CEO ou mesmo a antiga administradora da TAP, Alexandra Reis, que alegadamente recebeu uma indeminização choruda pela cessação de funções na empresa) são os efeitos políticos das suas afirmações – verdadeiras ou falsas – em quem as escuta, conhecendo perfeitamente a verdade e sabendo que aquilo que diz é falso e que toda (ou muita) muita gente sabe que é falso. Para além de já estarmos todos “empanturrados” com estas audições sobre a TAP no Parlamento, sabemos que o objetivo principal não é querer dizer (e defender) a Verdade nem ter a aparência de verdade, mas tão só chocar a opinião pública e semear a dúvida entre os cidadãos que se julgam bem informados. A finalidade é “condicionar” (ou mesmo liquidar) putativos candidatos a altos cargos partidários e governativos, e para isso é preciso dizer qualquer coisa, seja qual for a mensagem, verdadeira ou adulterada, pois isso resultará num ruído de fundo incessante nos media – proporcionará capas de jornais, aberturas de telejornal, comentários, crónicas, previsões, análises e até séries de entretenimento – que todos nós, público, vamos consumir. Sobre este assunto, num pequeno texto, Hannah Arendt é clara ao afirmar que abandonamos a Verdade como ideal cultural: “as mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão de político ou demagogo, mas também na de homem de estado” (Verdade e Política). Entramos, livres e voluntariamente, na era da pós-verdade!

Em suma, infelizmente as democracias contemporâneas promovem agora todo o tipo de tretas, mentiras, asneiras, idiotices… a ignorância em geral, e o próprio alicerce da educação já não procura formar o “carácter” dos cidadãos de modo a viverem bem e na/para a Verdade. A moral degenerou num instrumento utilitário, que nos dá prazer e permite ganhar dinheiro, para muitos a coisa mais importante na vida.

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