O país e o estrangeiro já sabem como começou a história na qual a CML informava as embaixadas de Estados estrangeiros sobre os dados pessoais dos activistas que convocavam manifestações de protesto, em Lisboa, contra esses mesmos Estados, alguns deles verdadeiras ditaduras ou com uma relação complicada com a democracia. Uma prática ilegal e contra todo o tipo de convenções internacionais que defendem e protegem os Direitos Humanos. Falta ainda saber como a história acaba, pelo que devemos dar atenção aos detalhes da orgânica da CML para se perceber a difícil relação de Fernando Medina com a verdade.
A polémica em torno da divulgação de dados pessoais vai muito além do que Fernando Medina diz ou defende. O processo agrava-se quando, para quem conhece o funcionamento da Câmara Municipal de Lisboa, os argumentos apresentados pelo edil se revelam fracos e nada convincentes.
De todo o processo importa reter vários dados:
Primeiro, a entrada em vigor do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) em Maio de 2018. Perante as obrigações cometidas às entidades, designadamente às autarquias, o vice-presidente da autarquia, João Paulo Saraiva submete, a reunião de Câmara, uma proposta de criação da equipa de projecto para a implantação do RGPD. Dessa proposta constava a nomeação do Dr. Luís Feliciano, distinto funcionário do município e com um currículo e funções, em décadas, que falam por si, bem como o programa e áreas de intervenção, onde são identificadas as unidades que constituem a orgânica municipal, aprovada pelos órgãos municipais competentes.
Em Julho de 2019, o mesmo vice-presidente submete à CML uma proposta de alteração do programa de protecção de dados pessoais (altera a proposta acima elencada), onde se identifica a realização do levantamento e tratamento de dados pessoais pelos recursos internos e a conclusão do diagnóstico por recursos externos, tendo-se “identificado desconformidades, mapeados os processos, analisadas as vulnerabilidades, identificados os riscos e apontados os pontos de melhoria transversais e para cada um dos serviços municipais” alterando assim a equipa liderada por Luis Feliciano, de 8 para 12 elementos, e aprovando o programa de protecção de dados, a aplicar até 31 de Maio de 2021. Este programa, tal como os documentos constantes da proposta de 2018, nunca referem o gabinete de apoio à presidência (GAP). Estranho que o gabinete com maior volume de correspondência e recepção de informação sensível, não seja contemplado nem mencionado nas várias deliberações. Provavelmente por não ser uma unidade orgânica.
Em segundo, o Gabinete de Apoio à Presidência. Uma estrutura informal de apoio ao presidente do município, que existe há muitos anos e processa, entre outros, a correspondência recebida, seja física ou digital, bem como a recepção dos emails referentes às manifestações. É notório que este gabinete depende directamente do presidente – como o próprio nome indica – que, de resto, nunca delegou a competência de recepção de comunicação de manifestações e manteve-a no GAP. Realço, a estrutura orgânica do município não contempla a sua existência. Portanto, quando o executivo socialista tenta iludir a opinião pública de que há uma dependência de outra estrutura orgânica, como a Secretaria-Geral ou o Departamento de Apoio aos Órgãos do Município, ela, na prática, não existe. Prova disso são os vários emails tornados públicos em que nenhuma destas estruturas aparece em «cc». Estamos perante o nítido objectivo de Medina querer, propositadamente, retirar o peso da sua responsabilidade sobre a gestão e funcionamento do GAP.
Importa ainda lembrar que, embora esta estrutura não exista organicamente, a legislação prevê que o presidente do município tenha um gabinete de apoio e chefe de gabinete, adjunto e secretária. Ou seja, à aplicação da lei junta-se esta estrutura de apoio administrativo e burocrático às competências que Fernando Medina não delegou em nenhum eleito.
Em terceiro, a extinção do gabinete de apoio à presidência e a criação de uma divisão. Embora entenda que a integração das competências de comunicação de manifestações fiquem devidamente enquadradas numa unidade orgânica, ela serve, com esta decisão, para resolver um problema de falta de gestão do presidente.
Por último, e no seguimento da rápida auditoria interna, a decisão de exonerar o coordenador da equipa de implementação do RGPD. E esta parece-me um ponto fulcral de todo este imbróglio em que Lisboa se vê envolvida e exposta a nível nacional e internacional.
Diz Fernando Medina que, após a detecção do fornecimento de dados os procedimentos internos sob esta matéria foram alterados em Abril de 2021. Ou seja, nessa data é indesmentível que o próprio já sabia de todo este processo referente à entrega de dados ao MNE russo e à Embaixada da Federação da Rússia. Mas o mais extraordinário está por contar.
Em Maio de 2021, um mês depois de alterar procedimentos, o executivo de Medina submete a reunião de Câmara a proposta de prorrogação do mandato da equipa de projecto sob a liderança de Luís Feliciano. A mesma pessoa que agora serve de bode expiatório para que o PS saia ileso das suas responsabilidades. Resumindo os factos para ser claríssimo: em Abril, Medina manda mudar procedimentos; em Maio decide renovar a confiança no coordenador e, em Junho, decide exonerar a mesma pessoa, como quem apaga um rabisco com uma borracha. Um processo com inúmeras pontas soltas que Medina não consegue esconder. E vale a pena referir, novamente, que não há uma única linha no relatório sobre o GAP.
Em suma, a exoneração do coordenador foi um mero acto de distracção do Partido Socialista neste processo, querendo culpar aquele a quem renovaram a confiança um mês depois do caso dos dados da Rússia.
A auditoria interna, feita à velocidade da luz, traz um conjunto de dados relevantes e preocupantes sobre os procedimentos relativos à protecção de dados, pelo que é essencial que seja lançada uma auditoria externa mais abrangente e independente.
O que não se pode aceitar é que Lisboa e os seus serviços municipais tenham à frente um presidente que, ainda que tenha apresentado desculpas públicas, entenda que não tem responsabilidade política, seja enquanto responsável máximo do município, mas também como responsável directo deste gabinete.
É preciso mais seriedade e responsabilidade. É preciso devolver a confiança aos cidadãos e às empresas. Com a postura de Fernando Medina neste processo, essa garantia caiu por terra.