A propósito do gigantesco investimento saudita no seu futebol nacional têm surgido questões acerca da moralidade dos atletas que escolhem ir para a Arábia competir. Convém, portanto, esclarecer, às mentes da intelligentsia política que vive no alto da sua bolha, o que se está a passar.
O jogador – trabalhador que vende a sua força de trabalho em troca de uns trocos (generosos, certamente) – que vai para Arábia Saudita poderia ir para outro país qualquer. Escolhe, pois, a Arábia Saudita porque é onde encontra financeiramente melhores condições: como qualquer outro trabalhador. Uma opinião até já defendida por Luís Castro, atual treinador do Botafogo, que terá acordo para rumar até ao Al-Nassr, clube onde joga Ronaldo.
Convém não confundir o peão do capital com o sistema vigente. Todo o dinheiro que os clubes sauditas pagam pelos jogadores e aos jogadores será sempre um valor menor do que aquele que terão de retorno com toda a conjuntura à volta dos atletas.
Naturalmente, a questão ética existe e não deve ser menosprezada. A Arábia Saudita, há que o dizer sem paninhos quentes, é um país que não respeita os Direitos Humanos. Claro que o washing planeado através do Futebol existe: enquanto se fala dos golos do Ronaldo, não se fala das mulheres oprimidas ou dos migrantes explorados. Mas será que tem de ser assim? Ou é sequer assim? O debate público não tem de seguir a crista da onda. Não será esta, contrariamente ao que pode ser o plano do Governo saudita, uma oportunidade para debater e fazer a necessária pressão civil? Não é isso que está a acontecer? Até agora, não me parece que alguém tenha mudado de opinião – se é que a tinha! – acerca do Governo saudita por causa de uns jogadores de futebol famosos, antes pelo contrário – a esmagadora maioria do comentário desportivo e civil tem sido no sentido de denunciar, ou pelo menos chamar a atenção, as práticas criminosas da Arábia Saudita. O argumento mais lido e ouvido – “papagueado” seria o termo correto, claro – é o que diz “o futebol e as contratações de futebolistas famosos estão a legitimar a política saudita”. Não estão. Ninguém passou a ser um fervoroso defensor e admirador da política saudita por causa de umas fintas giras ou de uns golos do outro mundo. Mas, enfim, a bolha política, como qualquer outra, tem dificuldade em sair de si mesma para ver o que se está a passar no mundo real.
Para além disso, a visão eurocêntrica de que o futebol pertence aos europeus não deve ser perpetuada. Há que ver com bons olhos o crescimento de outras ligas, noutros continentes – futebol é futebol, estejamos nós a falar da Premier League ou da Major League Soccer ou do Moçambola. A questão perante a qual nos deparamos deve mesmo ser a forma como esta expansão do futebol “com qualidade” está a ser feita. É claro que um fundo da Arábia Saudita não pode deter 4 clubes ao mesmo tempo no mesmo país, da mesma forma que John Textor não devia poder ter em suas mãos outros 4 clubes de países diferentes. Há que legislar em torno destas matérias. A competitividade desportiva e a própria integridade do Futebol está em risco. O futebol e o desporto, em geral, são do povo. Não fosse o desporto um elevador social funcional para quem tiver qualidade no seu trabalho, independentemente das suas origens.
Em vez de olhar para o problema de forma sintética, urge contrariar a opinião simplista. Nem todos os jogadores de futebol são milionários. Muito menos os treinadores. É completamente legítimo procurar melhores condições de trabalho no futebol, como em qualquer outra profissão. Isto não exclui, em paralelo, que se ignorem as atrocidades cometidas pelo Governo saudita. Devem ser pontos de vista, de resto, que andam de mãos dadas. A maior visibilidade que o futebol trará à Arábia tem de ser aproveitada para, de todas as formas possíveis, lutar contra aquele regime.