O país que agora não consegue passar à prática um plano de vacinação é o mesmo que em 1961 montou em poucos meses um Serviço Postal Militar que quotidianamente tratava dez toneladas de correio. Recordo que em Junho de 1961, após os incidentes de Luanda de 4 de Fevereiro e os ataques às fazendas no norte a 15 de Março, começara uma forte mobilização de militares para Angola. Com o acréscimo de militares o caos instalou-se nos CTT de Luanda: as famílias escreviam aos militares ali destacados mas as cartas não chegavam ao destino pois os CTT Ultramarinos não só não tinham capacidade para tratar tanto correio como nem sequer tinham estações em muitos dos locais para onde os militares eram transferidos após chegarem a Angola.
Torna-se então óbvio às chefias militares que têm de intervir porque sem correspondência é impossível manter as tropas motivadas e as respectivas famílias com a tranquilidade possível: o então Chefe do Estado-Maior do Exército, General Câmara Pina, requisita Ernesto Lourenço Dias Tapadas, funcionário dos CTT de Elvas, para montar um Serviço Postal Militar pois fora Ernesto Dias Tapadas quem os CTT tinham indicado no ano anterior, 1960, para criar uma secção postal nas manobras anuais em Santa Margarida em que tinham participado 15 mil homens. Dentro de algum tempo o Serviço Postal Militar tratava dez toneladas de correio por dia. Em média cada militar escrevia 13 aerogramas por mês e recebia dez. Entre 1961 e 1975 circularam 376 milhões de aerogramas. Aos aerogramas há que juntar as cartas, os cartões de Natal, os vales do correio e as encomendas. Tudo somado, estima-se que o Serviço Postal Militar tenha recolhido, transportado e distribuído 21 mil toneladas de correspondência.
Porquê recordar agora esta história? Para lembrar que não é preciso recuar muito para perceber que já fizemos operações de grande exigência e em contextos adversos.
Custa dizê-lo e custa ainda mais vivê-lo mas temos de o assumir: o país que agora não consegue sequer saber que armas tem guardadas e em que paióis as tem conseguiu manter um esforço militar assinalável noutro continente, África, em territórios separados entre si por milhares de quilómetros.
O país que agora não conseguiu assegurar a tempo aulas online aos alunos do ensino público é o mesmo que em 1975, no meio de uma situação politicamente convulsa, recebeu quase um milhão de pessoas provenientes de África, colocando muitas delas em pensões, hotéis ou seminários. Que teve de lhes fornecer novos documentos, certificados de habilitações, cartões de saúde e lugares nas escolas para os filhos. Dirão que foi caótico. É verdade que muitas vezes o foi mas se compararmos a dimensão do que então se conseguiu tratar com os meios então existentes com o que agora está a acontecer temos de admitir que Portugal perdeu capacidade e competência.
Em Fevereiro de 2021 quando há vacinas não há listas de prioritários, quando se seleccionam os prioritários não há lista de reserva, quando há seringas não há agulhas, os hospitais de campanha só agora, em Fevereiro, escolhem potenciais voluntários, as escolas não têm os computadores que desde Março do ano passado se sabia irem ser necessários…
O que Portugal está a viver neste momento não são tanto os efeitos da pandemia mas sim o confronto com algo que temos procurado iludir: somos um país em declínio. Intuímo-lo nos incêndios de 2017. Confirmámo-lo agora no estrepitoso falhanço da preparação desta vaga do vírus. Porque nos está acontecer isto? Porque aos problemas de sempre – as cunhas, os favores e a dependência – juntou-se uma administração tão medíocre quanto omnipotente e omnipresente. Um administração dos “filhos de algo” do regime: os maridos estão nas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, as mulheres nas Misericórdias e num qualquer grupo de trabalho, os filhos no centros da Segurança Social, as noras nas comissões de combate à causa do momento e num gabinete de estudos, os sobrinhos no instituto ou no observatório, ou em ambos, a prima na unidade de missão. São maioritariamente socialistas porque ser do PS é uma garantia de que se é melhor sucedido nestes percursos e menos escrutinado.
De geração em geração esta gente vive na máquina estatal ou nos negócios do Estado. Constitui um polvo gigantesco que tudo envolve e nunca se dá por satisfeito.
Põem-nos a discutir colonialismos pretéritos enquanto eles e as suas famílias, num remake das antigas juntas de colonização, fazem do aparelho de Estado a sua roça. Multiplicam as acções de sensibilização à solidariedade para depois passarem à frente dos velhos, dos doentes e dos trabalhadores da saúde na corrida à vacina. Exigem a regionalização porque ela implica mais umas camadas de cargos na administração pública.
A voracidade desta oligarquia estatal levou a uma exaustão de recursos (não por acaso chegámos ao absurdo de os custos de licenciamento de uma obra serem frequentemente superiores aos custos materiais da obra propriamente dita). Já a sua forma tentacular de exercer o poder conduziu a uma decadência técnica e moral da administração pública e política: ninguém é responsável por nada, o que disseram ontem desdizem hoje. O seu objectivo não é fazer mas sim sobreviver no cargo.
Apenas a pertença à UE mantém ainda algum verniz no funcionamento do regime e garante as verbas para irmos gerindo o declínio. Resta-nos pouco tempo para que este seja irreversível.