Há quase trinta anos era importante detestar os The Gift porque, para todos os efeitos, eles representavam o inimigo. Que inimigo era esse? Cantar em inglês. Com o tempo, todavia, foi estalando a dureza do meu coração. Dois momentos foram importantes: começaram a experimentar a nossa língua (sempre tive um fraco pela canção “Fácil de entender”) e uma vez conheci no Frágil o Nuno Gonçalves, senhor de uma elegância inesquecível para comigo. Nada como uma pinguinha de amor para nos fazer questionar ódios antigos.

Hoje quando penso em pessoal deste, como os The Gift, penso primeiro naquilo que nos junta e só depois no que nos separa. Deve ser da idade que me está a amolecer. Neste caso, penso que somos da mesma geração, que ouvimos muitos discos em comum, ainda que tenhamos feito discos tão diferentes. Por isso, quando soube que a Sónia Tavares tinha sido expulsa da zona VIP do Rock In Rio, não resisti. Fui ver o vídeo da denúncia. E confesso que me diverti como não esperava. Não me deve custar admitir que ela é uma força da natureza, mesmo além do vozeirão que sempre teve.

O vídeo do directo que a Sónia Tavares fez no Instagram é já um clássico de internet. São 12 minutos de puro entretenimento, revelando na cantora um dom indiscutível de animadíssima contadora de histórias. Há timing de comédia, há breves redemoinhos narrativos, há pequenas e irresistíveis alarvidades—é um prodígio videográfico, é quase cinema. O que sei é que desde o dia 17 de Junho de 2024 passei a ser fã da Sónia Tavares, cante ela em inglês, português ou mandarim.

Mas também vale a pena acrescentar outro comentário, acerca do destratamento que a Sónia Tavares recebeu. A minha tese é, como seria de esperar, estupendamente simples: para ser mal tratado num festival de Verão não é preciso que alguma coisa corra mal, como ali aconteceu—para ser mal tratado num festival de Verão pode até tudo correr bem. O festival de Verão, como é actualmente conhecido e praticado, é já em si uma experiência de maus tratos. Esses maus tratos podem vir de fora para dentro, como no caso da Sónia Tavares ser corrida da zona VIP, mas os maus tratos ocorridos num festival de Verão são sobretudo auto-infligidos.

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A pessoa que frequenta um festival de Verão atingiu um estado apreciável de auto-flagelação. A ironia é preciosa: em nome de um tipo de prazer que se exubera aos olhos do mundo, o frequentador do festival de Verão aceita e empreende uma verdadeira penitência pública. Também por isso, os festivais de Verão andam de mãos dadas com os braços mais musculados do capitalismo du jour: toda a culpa deve ser expiada diante do maior auditório possível. Os cidadãos propagandeiam picos de felicidade diante de palcos gigantescos que são altares a deuses inclementes, adorados de preferência na experiência mais fisicamente dolorosa da congregação.

O frequentador de festivais de Verão acumula-os como o velho pecador acumulava peregrinações a poisos sagrados, que o aliviassem de culpas inúmeras. Há juventude que preserva as pulseiras dos festivais que frequenta, publicando as algemas destas pós-Kidzanias musicais como novas chagas de Cristo. O facto de se sentir feliz em fazê-lo significa que se habituou a transcender o sofrimento físico e natural do seu corpo que, diante de tão meritório esforço, se regozija agora na bem-aventurança que é somar penitências: a dor tornou-se o prazer. Os festivais de Verão dificilmente têm a ver com música; têm sobretudo a ver com moral. E a moral que servem é a da aparência de hedonismo quando o recheio é completamente estóico. Num festival de Verão sofre-se com o som, sofre-se com um jejum que só pode ser interrompido pela aceitação do roubo, sofre-se com a socialização humana entretanto animalizada. Num festival de Verão é, portanto, estragada a escuta, a comida e a dignidade na via dolorosa mais acessível à pós-religião do guito.

Sou hoje mais sensível à necessidade de resgatar pessoas de festivais de Verão não porque sempre os evitei. Devo reconhecer memórias gratas do T99 no Jamor (Ministry a semear terror no relvado, por exemplo), Rage Against The Machine em Algés (sangramentos vários no meu grupo de cada vez que entrávamos no mosh pit) ou até Dylan e P. J. Harvey em Vilar de Mouros (performances puramente perfeitas). Devo até reconhecer a brevíssima ocasião em que, em palco secundário, participei do Sudoeste em nome do Giro da FlorCaveira em 2009, e no próprio Rock In Rio com os Lacraus em 2012. Mas nada disso interessa quando é da saúde espiritual dos meus filhos que trato, irremediavelmente atraídos por festivais de Verão.

Os pobres coitados dos meus filhos já sonham e se martirizam em preços absurdos e sacrifícios totais para expiarem os seus males em escassos momentos de transfiguração que trarão de regresso a casa. No caso da geração dos meus filhos, é de momentos de transfiguração literal visto que se filmam a eles mesmo durante os arrebatamentos musicais que lhes acontecem. Regressam sofridos e sorridentes, sem voz, sem nada no estômago, sem nada na carteira: é um intenso fenómeno de purificação religiosa. Apesar de sermos uma família de fé, queria poupar os meus pequeninos destas procissões. Continuarei a tentar e sinto que a Sónia Tavares pode ter ajudado.