Na sequência, dos vários boicotes dirigidos contra formas de discurso definidas como “discriminatórias”, verificou-se um substancial incremento no interesse suscitado pelo debate relativo à liberdade de expressão. A este contexto de boicote acoplaram-se as recentes tentativas de impor legislação que limite a difusão do discurso que seja considerado como disseminador de “desinformação”, o que fortaleceu ainda mais o interesse já existente pelo tema em análise. As apresentações que tiveram lugar no evento comemorativo do primeiro aniversário do Instituto+Liberdade, assim como as observações feitas à decisão de impedir a difusão do canal russo RT, são disto um bom exemplo.

A liberdade de expressão – entendida enquanto faculdade que permita formular e expressar livremente posições assumidas por cada interlocutor ou entidade coletiva – corresponde a um importante instrumento de controle e de fiscalização do poder por parte de todos aqueles que vivem sob a sua soberania e ação. Sem esta liberdade essencial o acordo, em sentido lato, que se encontra na base da sociedade fica reduzido a um contrato no qual uma das partes é forçada a abdicar da totalidade da sua liberdade a favor de uma outra. Acontece que, num acordo feito a partir destes moldes, a parte que abdica do seu âmbito próprio de ação fica incapaz de assegurar que o outro lado é fiscalizado no cumprimento da sua parte do acordado. Consequentemente, todo este mecanismo fica sujeito à arbitrariedade e à prepotência de um único elemento face a todos os restantes. Segue-se desta argumentação que a liberdade de expressão é o grande garante da proteção de todas as outras liberdades políticas.

Quem proíbe ou limita o exercício livre do discurso incorre em duas contradições: pressupõe, erroneamente, ser senhor de uma omnisciência que lhe permita fixar com total certeza o que é certo e o que é errado, ao mesmo tempo que pretende fazer uso da força para impor a verdade. Esta segunda atitude acaba por revelar-se uma incongruência mesmo para quem considere ter acesso a uma razão pura ou a um mandamento divino que legislem sobre o certo e o errado: a verdade é possível de impor por parte de quem a tenha na sua esfera recorrendo ao diálogo e à persuasão e isto sucede mesmo quando os efeitos benéficos destas atividades só se fazem sentir a longo prazo. Ora, sendo certo que a obrigatoriedade de o Estado agir em certas situações da condução da nossa vida em comum implica pressupor a existência de uma tábua de valores da qual resulte um fundamento para o seu movimento, nenhum órgão do Estado deve assumir que este valor de verdade esteja para além de qualquer questionamento que se possa fazer. Não se trata de adotar uma posição relativista em matéria de filosofia dos valores, mas apenas de um reconhecimento de que a tarefa difícil de desvendar aquilo que possa ser considerado verdadeiro fica facilitada pela existência de um contexto de livre discussão.

Por outro lado, a consagração da liberdade de expressão cria um incentivo para uma maior divulgação de ideias, em matérias relevantes para as várias disciplinas do conhecimento. Ao mesmo tempo, gera-se um incentivo para melhorar a qualidade e o interesse com que estas posições são expressas, o que facilita criação de um verdadeiro “mercado de ideias”. Saber fazer uso da criatividade e do engenho de modo a apresentar uma ideia correta de forma estimulante e com grande alcance entre a população pode corresponder a uma tarefa árdua, ainda assim, a dificuldade em ganhar um debate é uma das melhores medidas do quão livre é o discurso numa sociedade, sempre que estas limitações não decorram do esforço concertado por parte de uma autoridade política que pretenda limitar o discurso livre. Do mesmo modo, quanto mais difícil tiver sido a vitória num debate mais proveitosos e duradouros serão os efeitos positivos que dela decorrem.

A desconsideração pela ideia de limitar a liberdade de expressão em função de imperativos de ordem social é outro dos pontos que mais importa sublinhar neste debate. Aquilo que é de relevância social só é passível de ser identificado a partir do debate livre no qual cada um faz considerações sobre os benefícios que cada sistema de pensamento pode trazer para a vida em sociedade. Se resultar daqui a conclusão de que determinada ideia é prejudicial para uma sociedade, o mesmo ato que deteta este problema é também capaz de assegurar o efeito útil advindo do neutralizar de uma ideia danosa à vida em comum, sem que com isso se revele necessário recorrer a novas proibições. Isto porque, os efeitos nocivos das ideias prejudiciais estão dependentes da sua adesão, o que não pode acontecer depois de estas terem sido derrotadas, largamente e através do mesmo debate em que ficou evidente a sua natureza prejudicial. Quer isto dizer que na escolha criada pelo dilema entre as desvantagens geradas pela existência da liberdade de expressão e o grupo contrário de desvantagens criadas pela limitação da liberdade de expressão, é sempre preferível escolher ter de coexistir com este primeiro grupo de problemáticas. Importa ainda fazer notar que é sobretudo o discurso potencialmente danoso para a sociedade que mais requer proteção: nunca um livro foi censurado por ser considerado excessivamente banal nem houve humoristas que fossem impedidos de atuar por o seu humor não ser controverso o suficiente.

Por último, também não é aceitável que se limite a liberdade de expressão com base na consideração paternalista de que certas faixas da população não estão preparadas para a discussão dos assuntos de maior relevância. Uma vez que as gerações subsequentes questionam sempre o que lhes foi legado em termos de valores e de sistemas de pensamento, o fechamento de certos grupos ao debate não os impediria de se questionarem. Decorre daqui a necessidade de assegurar a existência de uma liberdade de expressão pujante, que crie um ambiente de discussão que permita às ideias acertadas criarem verdadeiras raízes na consciência dos vários membros de uma comunidade.

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