José Manuel Pedreirinho, um sujeito que é presidente da Ordem dos Arquitectos, considera o prédio Coutinho uma “aberração completa sem qualidade arquitetónica”. Após quinze minutos de buscas na internet, não consegui encontrar nenhuma obra do sr. Pedreirinho. É pena, porque acho que me divertiria imenso. Felizmente, encontram-se por esse Portugal afora inúmeras obras desenhadas e assinadas por inúmeros arquitectos inscritos na agremiação a que o sr. Pedreirinho preside. Para quem tiver estômago, é uma galhofa. Se o prédio Coutinho é feio – e Deus Nosso Senhor sabe que é horrendo –, não é mais feio do que largos milhares de estafermos que se plantaram de Norte a Sul nas últimas cinco décadas. Décadas em que, por obra (lá está) e graça (lá está também) de grandes, médios, pequenos e microscópicos arquitectos, a estética de uma nação pobre e mansa se transformou num compêndio insultuoso de porcarias. Por algum motivo, apenas o prédio Coutinho (e uns barracos de praia) foi indiciado para eliminação.

É verdade que se todas as construções repugnantes fossem demolidas, idealmente em cima dos vultos que as conceberam, metade da população daria por si a dormir debaixo de pontes. E isto enquanto as próprias pontes, cuja maioria ofende a vista, não fossem igualmente abaixo. Por estas e por outras, do bom senso às limitações financeiras, é apesar de tudo recomendável a manutenção das misérias visuais que temos. Donde uma questão: porque é que não se aplica o mesmo princípio ao prédio Coutinho, aparentemente o único bicho a abater num rebanho contaminado com gravidade?

Uma pergunta, nenhuma resposta, diversas suspeitas, meia dúzia de factos. Há uma autarquia, naturalmente socialista, que quer livrar-se do edifício em causa para construir um mercado municipal, por acaso a exacta estrutura que se arrasou para erguer, vai para meio século, o exacto edifício. Há um presidente da autarquia que, com a impunidade dos sobas e o descaramento dos impunes, comete os desvarios que lhe apetece para esvaziar aquilo. Há uma metástase da autarquia, chamada Vianapólis, que finge emprestar competência técnica à decisão e é chefiada pelo irmão de um secretário de Estado, ambos decerto habilitadíssimos. Há os contribuintes que patrocinam os 35 milhões necessários à existência da Vianapólis e às expropriações. Há um governo que costuma pugnar pela legalidade e produziu considerações interessantes acerca do assunto, incluindo a de que os “poderes públicos”, coitadinhos, saem “abusados” do processo. Há uma lei que condena os senhorios que incomodem inquilinos no sentido do despejo. Há a indiferença dos “poderes públicos” à lei. E há, claro, os moradores restantes do prédio Coutinho, os quais, com inimaginável insolência, recusam abdicar do que é deles e são por isso processados, perseguidos, cercados, ameaçados e privados de água, comida e saúde. O que não há é quem se enfureça a sério com tamanha demonstração de prepotência.

Em lugares civilizados – espero eu, que os tempos não favorecem o optimismo –, os últimos dias teriam assistido a um desfile de multidões furiosas à porta dos acossados, multidões de vizinhos, conterrâneos ou fortuitos, solidários com a resistência de nove pessoas a uma máquina sinistra e brutal. Por cá, não houve vivalma. Por cá, marcha-se e grita-se contra e a favor do que calha, desde que calhe de serem assuntos ridículos (a “identidade”), inevitáveis (a “troika”), remotos (o “Médio Oriente”), confusos (as “alterações climáticas”) e, em suma, quaisquer matérias aprovadas e certificadas pelos comités tácitos que aprovam e certificam os berreiros colectivos. Pelos nove do prédio Coutinho, velhos comuns que não integram tribos particulares, nem um. Nem uma criatura se aproximou daquela gente, a provar-lhe que não está sozinha.

A bem dizer, uma criatura tentou aproximar-se. Era uma actriz dramática local, Elisabete Nãoseiquê, regularmente financiada pela câmara e que sonhou com o primeiro “cordão humano” do mundo que em vez de proteger as vítimas protegeria os opressores. A aceitação, pelo tribunal, de uma providência cautelar favorável aos moradores travou os ímpetos da dona Elisabete, que passavam por escorraçar os resistentes. Porém, a ideia ficou. Aliás, a ideia já reside aqui há muito tempo – e não arrisca ser despejada: entre os fracos e os fortes, o português médio não hesita na preferência. De Viana a Faro, a esperança de um país livre é a primeira a morrer.

Do episódio sobra uma lição, que ninguém aprenderá. Os que enchem a boca com a fundamental serventia do Estado teriam no prédio Coutinho um bom exemplo para acompanhar a argumentação. O Estado serve para desumanizar os cidadãos. E os cidadãos deveriam servir para abominar o exercício e, na medida do possível, opor-se-lhe. É evidente que o Estado, que detém a força, acaba por ganhar sempre, ou quase sempre. Mas há perder com dignidade. E há perder assim.

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